1 de setembro de 2020

Tempo de Leitura: 5 minutos

Religiões e suas variações fazem parte do cotidiano brasileiro. Aliás, de acordo com dados do Censo de 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais da metade da população é cristã. Em um país de múltiplos contrastes e desigualdades, autistas e seus familiares colecionam diferentes experiências com práticas religiosas – influenciadas por uma rede de relações socioeconômicas, culturais e pela amplitude do espectro.

Apesar de não termos uma proporção numérica de autistas religiosos e não-religiosos – o próximo Censo está programado para 2021 – existem hipóteses e estereótipos ligados aos critérios diagnósticos do Transtorno do Espectro do Autismo (TEA). O hiperfoco, o pensamento rígido e as dificuldades de interação social são transformados em discursos sobre a religião. Mas, desta vez, são os autistas que criam suas narrativas.

Publicidade
Matraquinha

Autistas religiosos

Há autistas que consideram a religiosidade e a espiritualidade como essenciais em seu aprimoramento pessoal e na contribuição para uma sociedade melhor. É o caso da servidora pública e psicóloga Myriam Letícia, de 34 anos. A busca por e o encontro com a espiritualidade sempre foram muito marcantes na personalidade dela. 

“A figura de Jesus Cristo foi essencial na minha formação, mas fui beber de outras culturas e tradições para maior conhecimento e experiências, de forma a me tornar uma pessoa mais ética, solidária e fraterna no contato com o outro”, define Myriam, que hoje acredita numa espiritualidade “holística”, na qual há um encontro com um mistério divino.

O palestrante e escritor Nicolas Brito Sales, de 21 anos, herdou a religião evangélica professada pelos pais dele, ainda na infância. Nicolas faz visitas e encontros junto aos amigos de igreja e acredita que a fé é uma aliada poderosa para ter maior esperança, otimismo e amor ao próximo. “A minha mãe sempre me ensinou que Deus não é um homem sentado num trono, mas uma energia positiva”, relata. 

A jornalista e escritora Selma Sueli Silva, de 56 anos, é membro da Soka Gakkai Internacional (SGI), uma organização não-governamental de praticantes do budismo de Nichiren Daishonin. “O Buda Nichiren disse que qualquer pessoa pode se iluminar [atingir um estado de sabedoria em que não é guiada pelas circunstâncias] do jeito que ela é”, revela a comunicadora.

Selma aponta que o budismo é delineado pela “fé, prática e estudo” e que se sentiu atraída pelo pertencimento a uma associação aberta à diversidade, que “prima pela dignidade da vida e uma sociedade mais humanizada, por meio da Paz, Cultura e Educação”.

Autistas ateus

Débora Brandão: gestora de marketing

Frequentemente mal vistos por segmentos religiosos, os ateus são um grupo social que nunca alcançou hegemonia no país. Na dinâmica familiar, autistas ateus vivem experiências diversas. Aos 33 anos, a gestora de marketing Débora Brandão sente segurança em dizer que é ateia, mas passou por maus bocados em família. “A minha família é bem católica, praticante mesmo, e foi bem difícil”, diz ela.

Para Débora, que chegou a fazer catequese e primeira comunhão, os questionamentos começaram na infância, cresceram na adolescência e o processo, de forma geral, foi doloroso. Marcos Camargo, de 36 anos, também do interior de São Paulo, chegou a frequentar algumas igrejas até ter certeza de seu ateísmo.

“Eu não sei se isso é assim pra outros autistas, mas pra mim era muito complicado. Não só a ideia de Deus, mas de espíritos era muito abstrato, era um negócio muito de outro mundo assim que não entrava na minha cabeça de jeito nenhum”, destaca Marcos.

O designer Fábio Sousa, de 37 anos, e conhecido nas redes como “tio faso”, também passou por dificuldades parecidas com o pensamento concreto, mas é cauteloso com comparações. “Geralmente se você vê um autista que gosta de ciência, que tem todo esse pensamento racional, há uma grande tendência dele ser ateu, mas isso não é regra. Toda regra que tentam aplicar pra gente não funciona”, afirmou. Débora e Fábio disseram que nunca foram discriminados em interações com outros autistas por não serem religiosos.

Famílias atípicas na igreja

Ana Paula Porto:
mãe de 3, sendo
2 gêmeas autistas.

A jornalista Ana Paula Porto é mãe solo e tem três filhos, sendo duas autistas gêmeas, chamadas Nanda e Duda. Membro da Igreja Batista Nova Jerusalém, na zona norte do Rio de Janeiro, afirma que nunca passou por grandes problemas no templo. “Na minha igreja tem um departamento infantil e elas ficam bem. Só que quando não tem a escolinha e elas precisam ficar comigo, ficam incomodadas por causa do barulho”, conta.

Cláudia Moraes é mãe de Gabriel Pereira, autista de 32 anos, também diagnosticado com epilepsia, Transtorno Obsessivo-compulsivo (TOC) e distúrbios do sono. Após uma trajetória católica, eles se encontraram no espiritismo. “Nunca me senti excluída do espiritismo, da nossa casa [espírita]. Todo mundo ama o Gabriel, sempre foi muito bem tratado. Mas é muito difícil encontrar projetos para autistas adultos”, frisa.

Projetos sociais

Tatiana Ksenhuk é evangélica e tem quatro filhos, dois deles autistas. A experiência com o autismo a levou a desenvolver projetos para a inclusão de pessoas com deficiência e suas famílias nas igrejas de que fez parte na última década. Atualmente, ela atua na Igreja Batista Memorial de Alphaville, em Barueri.

Dentre as atividades desenvolvidas, Tatiana mantém um grupo de mães de autistas que, antes da pandemia, se reunia presencialmente. Além disso, a igreja mantém voluntários para acompanhar crianças autistas e também possui uma sala sensorial. “A igreja tem que estar preparada para receber essas crianças e suas famílias”, argumenta.

O psiquiatra Caio Abujadi trabalha com autismo há 15 anos. Ele é um dos fundadores da Associação “Caminho Azul”, que tem como objetivo dar assistência a famílias carentes, além de centralizar e difundir as informações sobre a temática no Brasil, por meio do suporte a outras entidades. “A maioria das associações é composta por pais, não por pessoas técnicas. Eles precisam entender o que é palpável cientificamente”, observa.

Uma das características da “Caminho Azul” é valorizar a religiosidade, tanto no caráter filantrópico quanto no que tange ao cultivo de valores como acolhimento, respeito e esperança. “Se você segregar alguma religião, você automaticamente não está sendo religioso. O que há em comum em todas as religiões são as virtudes que você precisa desenvolver para ser um bom praticante, e a gente precisa trazer isso para o mundo do autismo, no sentido de que as pessoas se desenvolvem melhor em um ambiente harmônico”, pontua Caio. No atual cenário de pandemia e isolamento social, a “Caminho Azul” lançou uma série de vídeos no YouTube chamada “Esperança”. “São vídeos educacionais sequenciados para ajudar em nossa transformação pessoal por meio de raciocínios de todas as religiões apoiados na Ciência”, conta Caio Abujadi.

COMPARTILHAR:

Jornalista, doutorando em Comunicação pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e autor do livro "O que é neurodiversidade?".

O poder das mulheres neurodiversas

Qual a nova possibilidade de se enquadrar nos critérios do BPC/Loas

Publicidade
Assine a Revista Autismo
Assine a nossa Newsletter grátis
Clique aqui se você tem DISLEXIA (saiba mais aqui)