18 de junho de 2020

Tempo de Leitura: 4 minutos

O Transtorno do espectro do autismo (TEA) é a deficiência oculta — sem características físicas reconhecíveis — com o maior número de diagnóstico na última década. O impacto do diagnóstico não é restrito ao indivíduo identificado, mas permeia esferas distintas no macroambiente. Mais de 80% dos cuidadores (aqui incluo como sinônimo de “pais” os familiares que moram, são afetivamente próximos e ou responsáveis), relatam sentir “estresse além do limite”. 

Sabe-se que o estresse afeta parentalidade, manejo de comportamentos desafiadores, relacionamento conjugal e produtividade laboral. A descrença na capacidade de cuidar do próprio filho é bem maior ao compararmos pais de pessoas com TEA com responsáveis por indivíduos com outros transtornos mentais. Essas informações são ratificadas por diferentes estudos e em culturas distintas. Entretanto, o suporte aos cuidadores como parte de estratégias de tratamento é pouco priorizado. Ações simples e óbvias são negligenciadas, agravando o prognóstico. Não há política de “cuidados aos cuidadores”. 

Publicidade
Tismoo.me

Presume-se que a reação ao diagnóstico do TEA é proporcional à gravidade dos sintomas. Mas, a sensação de confusão, negação, culpa e insegurança diante da necessidade de tomada de decisões depende, sim, da rede de suporte envolvendo os pais. Mesmo referindo apoio de familiares e de amigos, é frequente que responsáveis recebam críticas pelo estilo parental. Há uma cobrança implícita para indivíduos atípicos apresentarem sempre postura convencionada como típica. Isso gera julgamentos incabíveis e sensação de fracasso nos que educam. Muitas vezes, há afastamento dos parentes e isolamento de atividades sociais. Esse retraimento, minoritariamente, é um desejo parental. A resposta esperada, e mais saudável, seria a aceitação e a sensação de pertencimento ao grupo. Porém, a sociedade condiciona, seja por desconhecimento, seja por escassez de mecanismo de acessibilidade em locais públicos, o exílio. Interessante notar que, apesar de os pais relatarem perder amigos, especialmente as mães estabelecem novos ciclos de amizades – nos quais compartilham experiências de ter um filho com TEA. 

Os complexos desafios de cuidar cobram pedágio à saúde dos pais. O desassossego tem início com a percepção de “algo-diferente” no desenvolvimento do filho; peregrinando por diversos profissionais; com recorrência da resposta sobre “preocupação de pais” e associação dos comportamentos rígidos e estereotipados à “dificuldade em colocar limites”. O receio é negligenciar a janela de oportunidades para a melhora dos filhos. Impossibilidade de descansar; associada ao comprometimento da qualidade de sono; dietas em decorrência de transtornos alimentares nos filhos; necessidade de vigilância e cuidados constantes; “efeito shopping” (impacto social dos comportamentos inadequados e birras em locais públicos); alta taxa de separação conjugal; desejo de atenção aos outros filhos; recorrência de TEA na prole ou em genitores, levam à exaustão. 

Adicionalmente, com gastos até nove vezes maiores, mães e pais de crianças com TEA têm renda, respectivamente, 35% e 21% menor quando comparados a outros provedores. Cumprir a carga horária do emprego é um desafio, seja pelas intercorrências comportamentais e/ou pela demanda de intervenções. A incerteza de

acesso aos serviços de atendimento (públicos e privados) perpetua o sofrimento. Além disso, múltipla jornada de trabalho e restrição no orçamento familiar triplicam a ocorrência de transtornos psiquiátricos e clínicos nesses cuidadores. 

Infelizmente, os cursos superiores nas áreas da saúde e educação não abordam adequadamente alterações no neurodesenvolvimento. Desse modo, a reformulação na grade curricular e campanhas de conscientização são vitais para reduzir o intervalo entre a percepção dos pais e o diagnóstico. A postura acolhedora dos profissionais, ao investigar a queixa técnica e eticamente, além de diminuir o estresse parental, contribui para o estabelecimento de intervenções precoces. A equipe de atendimento deve oferecer informações apropriadas, baseadas em evidências e ajustadas às necessidades da família. Prestadores disponíveis, qualificados e capazes de entender às nuances de cuidar de uma criança com TEA, constituem a base para pais seguros e mais capazes de lidar com o impacto do diagnóstico. À equipe técnica cabe apresentar e orientar a melhor alternativa de intervenção. Entretanto, exceto em situações de risco à integridade física, a decisão concerne aos protetores legais. 

É preciso empatia para entender limitações, processo de enfrentamento e aceitação de cada parente. É válido ainda ter ciência de que aquiescência e planejamento familiar repercutem em estratégias funcionais de adaptação e colaboram para melhor prognóstico. O plano terapêutico deve equilibrar prioridade do indivíduo, desejo dos pais e alternativas de tratamento disponíveis, de forma individualizada e constantemente reavaliada. O foco não é a “normalização”, mas a independência. Por outro lado, é necessário destacar, sempre que possível, alterações positivas no fenótipo do transtorno do espectro autista. Essa percepção é um potente motivador para resiliência em quem cuida. Quando há orientação adequada, os pais são capazes de fornecer suporte consistente e reforçador ao comportamento apropriado e abordar efetivamente comportamentos negativos. Por isso, programas de intervenção para indivíduos com TEA devem, obrigatoriamente, oferecer orientação sistemática para cuidadores. 

A comunicação intrafamiliar clara e contínua e a abordagem coerente e unificada contribuem para redução do estresse, melhora da convivência e empoderamento parental diante de situações-problemas e demandas cotidianas. Vários programas de educação para pais já foram utilizados com sucesso para avaliar melhora dos sintomas de TEA. Em contrapartida, há poucos relatos de propostas específicas para abordagem do estresse parental. Modelação de comportamento, seja por vídeos ou na presença de um mediador, participação em grupo de orientação de pais; treinamento estruturado e suporte social parental on-line são medidas eficazes na mediação do estresse e, secundariamente, na melhora de ansiedade e depressão. 

Ao pensarmos em grupos terapêuticos para cuidadores é preciso considerarmos as particularidades culturais associadas ao gênero, à divisão de tarefas e ao sustento das famílias. Além disso, características como a localização dos encontros, a acessibilidade, o tempo de deslocamento e a possibilidade que outros cuidem das crianças no momento de orientação interferem diretamente na adesão de pais e cuidadores aos programas de apoio e devem, portanto, fazer parte do planejamento da intervenção. 

Referências: 

1. https://doi.org/10.1007/s10803-019-04359-5

2. http://dx.doi.org/10.3109/13668250.2013.773964

3. https://doi.org/10.1007/s10803-019-04014-z

4. https://doi.org/10.1007/s10803-018-3605-y

5. https://doi.org/10.1016/j.cpr.2016.10.006

COMPARTILHAR:

Médica psiquiatra, especialista em psiquiatria da infância e adolescência.

Editorial — Revista Autismo nº 9

Apraxia da fala

Publicidade
Assine a Revista Autismo
Assine a nossa Newsletter grátis
Clique aqui se você tem DISLEXIA (saiba mais aqui)