21 de outubro de 2022

Tempo de Leitura: 4 minutos

Perguntas sobre o autismo e o luto são recorrentes. Pais e familiares tentam entender como o autista lida com a morte. Eu me lembro de quando a Sophia tinha 3 anos e me perguntou de forma direta e curiosa: “Com quantos anos a pessoa morre?” Eu, na ingenuidade da mãe que acredita que pode proteger os filhos, respondi: “Quando completa 1000 anos.” Joguei a tal da morte para uma realidade super distante de todos que a Sophia conhecesse. Entretanto, ela passou anos a fio imaginando a pessoa com 1000 anos, cantando parabéns, soprando a vela e caindo de cara no bolo. Mortinha da Silva.

Querendo poupar minha menina, com estratégias que usava para mim, acabei por criar uma cena em sua mente que a perseguiu até o início da adolescência. De maneira geral, a pessoa autista lida com a morte de forma pragmática. É um evento que faz parte da vida e ocorre com todos. O que varia é com qual idade e contexto da morte. Essas varáveis é que podem trazer sofrimento, quando acontecem fora da sequência natural de nascimento, adoecimento, envelhecimento e morte.

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A história que me levou ao luto

Em setembro, perdi meu namorado. A morte havia sido anunciada por um exame que detectou uma válvula do coração degenerada. A palavra grave estava escrita no pedido de cirurgia ao plano de saúde, ainda assim, foi quase um mês para marcar a cirurgia. Mais os dias de exames pré-operatórios. Cirurgia marcada para o dia 01 de agosto. Mais de um mês depois do diagnóstico. Pelo que ele me havia contado, nenhuma recomendação especial, exceto ter à mão o número do celular do médico. No entanto, meu namorado continuou morando sozinho, no Retiro do Chalé.

Antes da data marcada, o médico solicitou um cateterismo que foi realizado no hospital Life Center. Meu namorado foi para o hospital para o exame e por lá permaneceu o dia todo, praticamente. A cada momento um médico ou enfermeira vinha justificar a demora devido a casos graves que deveriam ter prioridade no atendimento. Foi o tempo necessário ao vírus oportunista da covid.

Finalmente, o exame foi realizado e meu querido retornou à casa. Na segunda, dia marcado para a cirurgia, lá estava ele às 5 horas da manhã. Depois dos preparativos, foi ao bloco cirúrgico. Percebendo que o tempo passava e nada de começarem a cirurgia, ele perguntou o que estava acontecendo. O médico, então, disse que não havia sangue no estoque do hospital. Portanto, não haveria a cirurgia.

No autismo, o luto sem sofrimento acontece quando existe lógica nos acontecimentos

Mais uma vez, ele voltou para. No dia seguinte, terça-feira, ele ligou para o médico relatando que estava com muta tosse. O médico recomendou que ele fizesse o teste para covid. Deu positivo. Assim, o médico informou que ele deveria ficar 14 dias afastado de todos. Fiquei por entender: Coração fraco + covid + ficar de repouso sozinho = PERIGO.

Mas eu sou leiga, não é o que dizem? Mal esperei esse tempo e fui visitá-lo. Perguntei, de pronto, sobre a cirurgia. Ele respondeu que o médico estava pensando em operá-lo em um mês. Mesmo que eu tenha prometido a ele não me meter, implorei: “Liga para ele, marca logo a data.” Ele tentou, deu ocupado e me prometeu que marcaria ainda naquela semana. Eu só queria evitar que o autismo e o luto se encontrassem.

Na semana do dia 23 de agosto, lá estava eu de volta. Meu namorado ainda não havia falado com o médico. Fiquei brava, mas tentei me manter serena ao dizer para ele: “Liga agora, o interesse é seu, não deixe essa cirurgia virar uma novela.” Assim, meu namorado fez. O médico, para minha surpresa, no entanto, marcou a consulta para 10 dias depois: dia 03 de setembro, final da outra semana.

Assim, na semana do dia 03, combinamos de nos encontrar no dia 03, sexta, pela manhã. O médico seria à tarde. Achei meu querido sem energia vital, com olheiras, e triste. Ele disse que ficaria tudo bem, pois iria ao médico. Não me ligou mais. No dia seguinte, sábado, liguei para saber como foi no médico. Ele estava no sítio de um casal de amigos.

O desfecho que machuca

O médico acreditou que ele poderia esperar mais 2 semanas, apesar do cansaço e de estar se sentindo feito zumbi.
Penso que as pessoas nunca deveriam ir sozinhas ao médico. Imagino que, como pacientes, devemos levantar todas as hipóteses e possibilidades. Fazer isso, com alguém de confiança do lado, fica mais fácil. Entretanto, a escolha será sempre do paciente.

No domingo, voltamos a conversar, no início da noite, 18h30. Meu querido morreu, dormindo, naquela madrugada. Estou com o coração doendo até hoje. O autismo encontrou-se com o luto. Embora entenda que a morte seja natural na vida de todos nós, é difícil para a pessoa autista compreender, quando a sequência de acontecimentos que antecederam o evento, parece não obedecer a uma lógica aceitável.

Assim, decido confiar na sabedoria do universo. O tempo que desfrutei ao lado de um ser humano tão especial, com a determinação dos dois, de sermos presença amorosa na vida um do outro, foi, certamente, um presente. A gente se conhecia desde 2001. O namoro só aconteceu neste ano – pouco tempo, mas intenso. O luto ainda existe, claro. A dor é um apego natural, do humano, que vem do desejo de que tivesse durado um pouco mais. Mas a sabedoria do universo é perfeita e tudo foi como deveria ter sido.

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Jornalista e relações públicas, diagnosticada com autismo, autora dos livros "Minha Vida de Trás pra Frente", "Dez Anos Depois", "Camaleônicos" e "Autismo no Feminino", mantém o site "O Mundo Autista" no Portal UAI e o canal do YouTube "Mundo Autista".

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