1 de setembro de 2023

Tempo de Leitura: 6 minutos

Tratamento de TEA com terapêutica canabinoide vem ganhando espaço entre pessoas dentro do espectro

O canabidiol, ou simplesmente CBD, tem sido cada vez mais estudado e pesquisado mundo afora. Diversos trabalhos científicos apontam para um uso eficaz no tratamento de epilepsia refratária  em que diversos medicamentos já conhecidos foram prescritos e não conseguiram conter as crises convulsivas. Muitos relatos sobre a utilização do CBD para epilepsia em pessoas autistas citam uma melhoria para os sintomas de autismo, principalmente nos casos de maior comprometimento. Isso levou pesquisadores do mundo todo a pesquisarem mais profundamente o uso do canabidiol em autistas.

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Tismoo.me

Uma das pesquisas mais promissoras está acontecendo na Universidade da Califórnia em San Diego (EUA), liderada pelo Dr. Alysson Muotri, neurocientista brasileiro, cofundador da Tismoo Biotech e da Tismoo.me, que faz uma pesquisa inédita com autistas sem epilepsia e organoides cerebrais (“minicérebros”) gerados com o DNA dessas pessoas. Assim é possível comparar resultados no laboratório com efeitos práticos da droga na vida desses indivíduos. Os resultados ainda não foram completamente publicados.

Com a intensificação de pesquisas e famílias cada vez mais interessadas no seu uso, médicos têm optado pelo CBD cada vez mais em suas prescrições para autistas, principalmente os que têm a epilepsia como uma comorbidade. Basta conversar com alguns médicos que o discurso é o mesmo: todos os dias, as famílias (principalmente as mães!) chegam nos consultórios buscando informações sobre a terapêutica canabinoide. Mas, afinal, o que é, como funciona e quais os benefícios reais do canabidiol (CBD) para a saúde?

Medicina canabinoide

Os termos “medicina canabinoide” ou “canabinologia” ainda soam pouco familiares aos nossos ouvidos, mas em alguns casos podem auxiliar no tratamento de diversas doenças, incluindo o transtorno do espectro do autismo (TEA). A médica Juliana Bogado, especialista em medicina canabinoide, explica que, para entendermos os efeitos dessa substância, precisamos saber que existe no corpo humano o sistema endocanabinoide que, assim como o sistema nervoso central, respiratório ou cardiovascular, entre tantos outros, é parte fundamental do nosso organismo. 

“O sistema endocanabinoide está associado a diversos outros sistemas e suas regulações. Portanto, onde ele estiver deficiente, o tratamento com fitocanabinoides trará benefícios. Por exemplo, existe a síndrome de deficiência do sistema endocanabinoide, que é o que a grande maioria de nós “mortais modernos” vivemos. Essa nossa vida de estresse intenso, ansiedade, alimentos processados, industrializados, sedentarismo… Tudo isso gera uma deficiência nesse sistema, fazendo com que outros [sistemas] não funcionem corretamente, gerando doenças”, detalha a especialista. A medicina canabinoide aborda, portanto, o funcionamento desse sistema e também os canabinoides em geral como possibilidade terapêutica.

O pediatra Hugo Werneck conta que essa foi uma realidade que apareceu em sua prática clínica e que o impulsionou a estudar. “Lá em 2016 ou 2017, os pacientes já me procuravam para usar canabidiol e ter uma melhora nos sintomas do espectro autista. Começou a aparecer um, dois, três, quatro, e quando eu vi, falei: gente, eu tenho que estudar isso aí porque eu sou pediatra. Tenho que pegar o global do menino, não posso deixar apenas como uma prescrição. Tenho que entender o indivíduo por inteiro”, relembra, afirmando que sua abordagem é levar perspectiva de melhora de qualidade de vida não apenas para o paciente, mas para toda a família. “Se o tratamento convencional falha, a gente tem que ter o plano A, B, C, D. Eu não posso focar apenas em um, pois estou lidando com vidas, com realidades, com sofrimento. A especificidade para o tratamento com canabinoides é essa: tratar a dor”.

Desse desafio Fernanda Maria Dantas entende bem. Mãe do Kaio, 17 anos, menino com autismo nível 3 de suporte, com agravante de manipulação, encontrou no tratamento com canabidiol o apoio que precisava para seguir firme ao lado do filho. Ela conta que Kaio abraçou uma violência muito grande nos últimos dois anos, principalmente contra ela. “Chegamos a 39 comprimidos diários, entre antipsicóticos, remédios para dormir, comportamentais. Um dia, eu cheguei no consultório, – e eu nunca tinha falado isso com ele – disse que estava realmente muito cansada. Eu não aguento mais. Puxei a blusa e mostrei pra ele o estado que eu estava. Ele ficou horrorizado”. Foi nesse ponto que o médico sugeriu o tratamento com CBD. Já na primeira semana de tratamento, Fernanda conta que sentiu mudanças significativas e, com a continuidade do uso da medicação, viu seu filho se transformar. Ele voltou a verbalizar, a brincar e a interagir com as pessoas. “Voltou a ser um menino carinhoso, escolher as coisas que quer comer, que quer assistir na TV, escolher a roupa que quer vestir, o calçado que quer calçar, os lugares que quer ir. Eu não consigo te explicar a não ser nessas palavras: hoje ele é outra pessoa”, afirma Fernanda.

Outro profissional que aderiu ao estudo da canabinologia é o neuropediatra Mauro Lins, que, ainda na faculdade, ouviu falar das pesquisas acerca do canabidiol e resgatou esse interesse no contato com algumas mães dos EUA, que começaram a falar dos efeitos do tratamento no autismo. Para ele, os principais benefícios da terapêutica são regulação do comportamento, diminuição de irritabilidade, de quadros de agressividade, de agitação psicomotora e, segundo ele, algumas famílias descrevem uma melhora geral da comunicação, do uso da linguagem e da interação. “A maioria faz um relato positivo de melhora moderada a acentuada, na faixa de 70% a 80%. A melhora também é observada por outros familiares, equipe da escola, equipe multidisciplinar”, afirma o médico. Irene Silva Frambach de Sá Freire, mãe do Thiago, 18 anos, que apresenta autismo de grau severo, procurou o neuropediatra para isso e, hoje, faz parte da boa estatística. “Desde que começou a tomar, teve uma melhora significativa. Melhorou muito o quadro de agressividade, o sono, a concentração. Quando fazia uso na dosagem certa, perdeu bastante peso também. Hoje dou a metade recomendada por conta do valor”, relata Irene, que também é mãe de Matheus, 20 anos, diagnosticado com autismo de grau leve. “A diferença com o tratamento é que a gente consegue ficar mais centrada, mais tranquila. A minha vida é viver um dia após o outro”. Ela ainda sonha em conseguir proporcionar o tratamento para os dois filhos.

CBD é indicado para todos os casos?

A resposta é não! Pois todo medicamento deve ser prescrito por um médico e sua orientação deve ser seguida à risca — essa regra é crucial para qualquer condição de saúde, logicamente. É o médico que opta por este ou aquele tratamento, não a família ou o paciente.

Juliana Bogado, todavia, explica que, de forma geral, não existe contraindicação para o tratamento, mas pontua que cada canabinoide tem uma indicação diferente. O canabidiol, por exemplo, que é considerado o principal canabinoide, não tem contraindicações. Já o THC, que é o segundo canabinoide mais estudado, possui contraindicações específicas. É preciso ficar muito atento a essa diferença! “Claro que quando falamos de TEA, estamos falando de um espectro, em que cada paciente se manifesta de uma forma. Com o tratamento não é diferente. A resposta terapêutica é bastante individualizada e, na grande maioria das vezes, muito satisfatória”, completa a médica.

A avaliação de Mauro Lins é que o canabidiol pode ser um aliado no tratamento de algumas comorbidades e que “vale muito a pena, porque tem um perfil de segurança bom, poucos efeitos colaterais e uma tolerabilidade maior do que medicamentos convencionais”, reforça. Mas, para chegar a uma indicação correta de tratamento, é fundamental que a avaliação seja feita por um profissional capacitado e com experiência. Hugo Werneck sublinha que “os cuidados são os básicos de qualquer consulta pediátrica ou clínica: anamnese, avaliação laboratorial, função hepática, hemograma, todos os exames laboratoriais, eletrocardiograma. Porque, dependendo, você pode ter um sintoma secundário: um menino com autismo pode ter hipotireoidismo, hipertireoidismo, anemia, constipação… Você tem que avaliar todo o indivíduo clinicamente”.

Rompendo barreiras

Para prescrever tratamento com canabidiol, o profissional precisa dedicar muitas horas de estudo e superar desinformações e preconceitos. Desde 2015, Mauro Lins trata pacientes com canabidiol e percebe que ainda é necessário conversar muito sobre essa área da medicina. “Cabe ao profissional orientar as famílias que, às vezes, vem com alguns mitos, tanto do lado exagerado ‒ que a planta teria propriedades fantásticas, maravilhosas ‒, como também o lado do preconceito ‒ de achar só malefícios e efeitos colaterais, que estaria drogando o filho. Isso é falta de conhecimento”.

As barreiras culturais e econômicas também são um ponto a ser observado, de acordo com Hugo Werneck. “Hoje, o tratamento terapêutico com canabinoide não é de fácil acesso, não é democrático. Tomara que a gente consiga mudar isso nos próximos anos. Um tratamento simples, que pode fazer um benefício gigantesco, mas que no Brasil vira um absurdo prescrever seis gotinhas de uma medicação”, lamenta o médico.

Fernanda enfrentou esses desafios na pele, com familiares e amigos desestimulando o uso do medicamento. “Várias pessoas falaram: não tenta, isso é bobagem, não dá certo. Mas tudo que diz respeito ao Kaio, eu enfrento o desafio. Eu sempre pago pra ver. E realmente paguei pra ver e não me arrependo em hora nenhuma. Só quem viveu o que eu vivi e tem o resultado que eu tenho hoje, pode assegurar mesmo, de coração limpo, o quanto o CBD está sendo maravilhoso na vida do meu filho”, fala a mãe em tom de comemoração.

Semeando conhecimentos

Para auxiliar os profissionais de saúde a aprofundarem seus estudos acerca da canabinologia e se sentirem seguros para prescrever canabidiol, existe a EndoPure Academy, uma plataforma de cursos voltada para o universo da medicina canabinoide. Juliana Bogado é também coordenadora acadêmica da plataforma e elucida que “nós falamos do canabinoide como medicamento, de forma séria. Oferecemos cursos nas mais variadas áreas da saúde, como pediatria, cardiologia, neurologia, geriatria, nutrição, entre outros, sempre em diálogo com a terapêutica canabinoide, exclusivamente para profissionais de saúde, possibilitando acesso a informações de qualidade, que vão assegurar o tratamento correto de pacientes em diversas condições, com diversas doenças”.

(Com colaboração da jornalista Caru Rezende)

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Editor-chefe da Revista Autismo, jornalista, empreendedor.

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