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Artistas e bandas de autistas usam vertentes do rock e de outros gêneros para cantar músicas autorais e covers
Uma das expressões musicais mais relevantes do século 20, o rock foi palco de mudanças estéticas e comportamentais na sociedade em nível global. Apesar de não estar entre os gêneros de maior popularidade nos aplicativos de streaming, rádios e no gosto geral da população brasileira atualmente, a rebeldia e as possibilidades de experimentação do rock permeiam a criação e obra de vários artistas… inclusive autistas.
O autismo, por outro lado e com toda a atenção que tem recebido nas últimas décadas, tem mobilizado uma série de artistas, da música clássica ao funk. Entre eles, cantores e bandas formadas por pessoas autistas têm utilizado suas vivências no espectro para embalar canções distorcidas nas seis cordas.
Criação e expressão
A cantora e compositora Livon, hoje residente em São José do Rio Preto (SP), é fã dos Mutantes e da fase clássica do Pink Floyd. Seu trabalho traz fortes influências do rock psicodélico dos anos 1960 e composições autorais como “Psicolouca” e “O Mau Uso da Máscara”.Apesar de cantar desde os 4 anos, a carreira só começou a engrenar quando foi convidada a ser vocalista de uma banda na universidade. Mas, nem tudo foram flores: sua trajetória foi atravessada por crises existenciais, depressão e a mudança de cidade e de cursos. Primeiro, veio a Física, depois a Economia. Além disso, também crises sensoriais e sobrecarga por conta de shows. A descoberta do autismo veio durante a pandemia, depois do diagnóstico também de seu filho mais novo, Raul.
“Eu nunca imaginei que pudesse estar no espectro do autismo, mas durante a pandemia minhas crises sumiram, e percebi que algo no ambiente sensorial estava me afetando. Isso confirmou o que meu marido já suspeitava. Ele achava que eu não era muito diferente do meu filho”, contou em entrevista à Revista Autismo.
Doutora em Física, a capixaba Ilus também teve o diagnóstico fechado durante a pandemia, mas a procura se deu antes disso. A cantora já tinha uma carreira marcada pela experimentação, com letras engajadas por ideais feministas, fusão de gêneros como o funk e o canto lírico. Sua primeira canção de destaque, “Revolucionou”, circulou em presídios femininos no Espírito Santo. Mas, dificuldades administrativas de gestão de sua carreira — o famoso “vender o próprio peixe” — indicavam que tinha alguma coisa ali, até que ela conheceu Mayck Hartwig, com quem mais tarde co-fundou o projeto Adultos no Espectro.
“Eu achava que podia ser timidez. E aí, quando a gente começa a pesquisar, começa a ficar mais atento, começa a falar com uma pessoa, com outra, e rapidamente veio a ideia do autismo. No SUS, tive muita dificuldade. E na pandemia, fiquei sem dinheiro, sem trabalho. Aí eu conheci o Mayck. Ele me direcionou para os profissionais certos”, disse a artista.
Tanto Ilus quanto Livon são compositoras. O autismo é tema de grande parte da obra das artistas, principalmente seus lançamentos mais recentes. Ilus lançou, em 2023, o álbum Natureza Líquida, com repertório marcado pela sonoridade acústica e canções como “Anjo Decaído”, “Verdades Mortais” e “Quebra-Cabeças”. Já Livon lançará um EP chamado “Atípica”, em 2025, todo baseado na sua experiência enquanto autista.
A cena
Em 2017, a primeira banda de autistas a ganhar certa popularidade no país surgiu em Brasília (DF). A Timeout Rock Band, criada a partir de um projeto de socialização e intervenções para autistas, chegou a aparecer em um mini-documentário na Netflix, lançou música autoral e, em 2024, apareceu no programa Caldeirão com Mion, exibido na Rede Globo, e segue fazendo shows sempre que possível.
A formação atual é composta por Ivan Madeira (vocal), João Gabriel (vocal), Henrique Barnes (bateria), João Vítor (bateria), Nina Pinheiro (teclado e vocais) e Thiago Carneiro (guitarra). Nina disse que a canção “Hey You! I Need a Timeout”, a única já lançada pelo grupo, é a sua favorita. “Entrei [na Timeout] no final do ano passado. Eu conheci a banda entrando no Vivências, que é um espaço neurodiverso para adolescentes e adultos”, contou.
Já em Goiânia (GO), o baixista Caio Henrique fundou, em 2022, o grupo Os Lanternas, após sugerir a criação de uma banda de autistas na associação da qual faz parte, o Núcleo de Arte e Inclusão do Autista (Naia). Ele aprendeu o instrumento para tocar no grupo. “Eu sabia que precisavam de um baixista. E como tinha vários instrumentistas naquela época, baterista, guitarrista, tecladista, então eu assumi o baixo”, disse. Além de Caio, o grupo é formado por Marcos Filho (bateria e vocal), José da Mata (guitarra), Marx Osório (guitarra e vocal), Samuel Paim (teclado), além de um time de vocalistas: Alexandre Augusto, Gustavo Cabral, Murilo Leal, Nilo Valle e William Ferreira.
Os Lanternas tocam sucessos do rock nacional e internacional, ensaiam toda semana no Naia e recebem o apoio técnico e liderança da musicoterapeuta Renata Lima. A banda já tocou em escolas, universidades, teatros, praças, casas de show como o Bolshoi Pub, mas também em locais inusitados, como quadras de beach tennis, concessionárias e até no Estádio Onésio Brasileiro Alvarenga, na capital goiana, durante o campeonato da Série B.
Doutorando em Farmácia, Marx Osório recebeu o diagnóstico de autismo em 2023 e disse que o calor foi um desafio na experiência de tocar no estádio. “Foi num sol de 3 horas, 4 horas da tarde. Mas foi legal, a experiência foi muito boa, porque a torcida realmente curte bastante rock clássico, brasileiro e internacional. Curiosamente foi um dos lugares onde a receptividade do público foi a melhor de todas”, afirmou.
Os shows profissionais de Livon, inicialmente, também só continham covers. Durante a pandemia, com a descoberta do autismo, ela passou a ter mais coragem de expor suas próprias letras. O pontapé foi um festival de música autoral. Depois vieram os prêmios e gravação de singles. O seu futuro EP foi garantido com recursos da Lei Paulo Gustavo.
Ilus também fez vários trabalhos em shows e concertos como cantora lírica, e sua atividade como professora de canto a ajudava a demonstrar seu conhecimento em música. Recentemente, a artista liberou uma roupagem pesada e distorcida de “Anjo Decaído”, com direito até a videoclipe. Mas a dificuldade no circuito de shows era a socialização. “O meio musical é um meio muito difícil, é difícil para qualquer pessoa. Imagina uma pessoa autista que não tem essa leitura [social] tão apurada”, argumentou.
O autismo e a arte
Da experiência coletiva de bandas até à criação individual compartilhada em gravações de estúdio, são muitas as etapas de produção musical e de relacionamento. Questionado se o autismo faz diferença em tantas formas de fazer música, Marx acredita que sim. “Eu sinto que a música é a arte que mais expressa o que a gente é de fato. É a única arte capaz de ativar todos os sentidos do cérebro ao mesmo tempo”, defendeu.
Livon, por sua vez, pensa que existem várias formas de criar e se expressar pela música e que o artista inquieto, que aborda o mundo a partir de sua ótica pessoal, pode ser impactado pelo autismo. “A arte veio na minha vida como um melhor amigo. A gente está no espectro e tem vivências particulares. Por isso não tem como isso não se materializar nas nossas composições”, afirmou.
Já Ilus argumentou que só poderia avaliar as diferenças entre autistas e não-autistas se pudesse ter as duas vivências. Ser autista, para ela, é uma experiência completa. “Fui percebendo que eu conseguia me comunicar melhor com as pessoas através da música do que sem ela. Quando eu comecei a cantar, percebi que tinha sintonia pela primeira vez em toda a minha vida. Todas as minhas intenções chegavam nas pessoas. Sempre usei a música como forma de comunicação”, contou.
Assim, a experiência autista cobre tanto as escolhas de Ilus em relação aos timbres e frequências na produção de seu primeiro álbum, quanto as letras de reconciliação pessoal criadas por Livon. Para Caio, tocar é uma forma de cumprir um sonho. “O importante é trabalhar as nossas dificuldades. E ao mesmo tempo que a gente é bom com isso, a gente pode ir longe”, destacou.
Em relação aos Lanternas, segundo Marx, há a possibilidade de ter um repertório autoral no futuro. “Eu não componho, mas eu acredito que possa ter [um repertório autoral]. Eu sou muito mais executor musical do que compositor. Mas tem muitos colegas lá que são compositores. No começo, muita gente não acreditava. E o Naia sempre acreditou no nosso potencial”, disse.