1 de dezembro de 2022

Tempo de Leitura: 6 minutos

Em 27 de dezembro de 2022, a Lei 12.764/12, que trata da Política Nacional de Proteção dos Direitos das Pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), completa 10 anos de vigência. De lá para cá, o autismo se tornou bem mais conhecido, mas será que temos o que comemorar, especialmente quanto à implementação de políticas públicas?

Em 2010, quando passei a atuar na unidade da Fazenda Pública da capital paulista, não imaginava que, entre os 1.800 processos que estariam sob a minha responsabilidade, encontrava-se a conhecida ação civil pública (ACP) que condenou o Estado de São Paulo a prestar atendimento adequado às crianças, adolescentes e adultos com TEA nas áreas da saúde, educação e assistência social. A referida ação, fruto da luta de mães de pessoas com TEA e proposta pelo Ministério Público, tramitava há 10 anos, já com condenação transitada em julgado e em fase de execução, porém as políticas públicas no Estado ainda não estavam adequadamente organizadas. 

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Mães, a maioria delas mães solo, que ficaram responsáveis sozinhas pelo cuidado do filho, continuavam a comparecer à Defensoria Pública do Estado de São Paulo para denunciar a falta de atendimento adequado. Cansadas de uma vida de muita luta e sem encontrar qualquer eco ao seu pedido de auxílio em órgãos públicos. As denúncias abrangiam várias violações de direitos, como a completa falta de atendimento terapêutico ao longo de toda a infância e adolescência, em razão do qual muitos adultos com TEA permaneciam em suas casas regredindo e se auto lesionando. Não faltavam, também, denúncias de que crianças e adolescentes permaneciam nas escolas, excluídos no fundo da sala de aula e realizando atividades alheias ao currículo, além de mães sendo chamadas constantemente para buscar seus filhos, durante o período letivo, a qualquer alteração comportamental. Na área da assistência, centros de convivência, centros-dia e residências inclusivas também eram inexistentes para pessoas com TEA. Sem contar reclamações de falta de esportes adaptados, ausência de transporte escolar e para atendimento de saúde.

Naquela oportunidade, para além do atendimento jurídico prestado às pessoas com TEA mais vulneráveis pela Defensoria, junto com um grupo de mães, organizamos uma cartilha sobre os direitos das pessoas com autismo, que foi lançada em 2011 — a primeira com o enfoque nos direitos. Cartilha construída de forma coletiva com as famílias e os profissionais com especialidade em autismo. Realizamos, ainda, junto com o Movimento Pró-Autista, três seminários para levar informação às famílias e aos profissionais e percebemos o quanto o interesse do público crescia, já que no terceiro seminário, realizado em 2012, em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento da Universidade Presbiteriana Mackenzie, tivemos um público de cerca de mil pessoas. 

Paralelamente, grupos de famílias também se organizavam em outros Estados, em razão das mesmas dificuldades na implementação de políticas públicas. A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro também tinha ingressado com uma ação civil pública com o mesmo objetivo da ACP proposta no Estado de São Paulo, ou seja, de garantir atendimento adequado para pessoas com TEA, porém, apesar de julgada procedente, nunca se converteu em políticas públicas efetivas naquele Estado. Em razão disso, familiares de pessoas com TEA se organizaram para a elaboração de um projeto de lei, que pretendiam que fosse de iniciativa popular, para garantir uma Política Nacional de Proteção de Direitos das Pessoas com TEA, e que acabou, após muita dedicação dos seus idealizadores e ampla participação popular, em se converter na Lei 12.764/12, também chamada de Lei Berenice Piana.

A primeira questão sempre foi a dificuldade de se reconhecer no país pessoas com TEA como pessoas com deficiência a despeito de a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu status constitucional. Talvez, grande parte dessa dificuldade tenha relação direta com a ausência, até os dias de hoje, de uma avaliação biopsicossocial para identificação das condições que podem ser consideradas como deficiência a partir do modelo social e a utilização, ainda no país, do modelo biológico de deficiência para acesso às políticas públicas. 

Porém, a necessidade de garantia de direitos específicos para pessoas com TEA era urgente e exigia naquele momento a equiparação às pessoas com deficiência, sem a qual a efetivação de certos direitos era muito difícil, com negativa do Poder Executivo e do Poder Judiciário, que não reconheciam que pessoas com TEA pudessem ser consideradas pessoas com deficiência à luz da Convenção. E, neste sentido, essa equiparação com certeza acabou sendo a grande conquista para as pessoas com TEA, pois permitiu o exercício de vários direitos, não só previstos na Lei 12.764/12, mas também na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e na posterior Lei Brasileira de Inclusão.

Ocorre, entretanto, que a equiparação com pessoas com deficiência e garantia dos direitos não acompanhou a implementação de políticas públicas específicas, seja pelo governo federal, seja por governos estaduais e municipais. A sensação das famílias, especialmente as mais vulneráveis, é de um abandono pelo Poder Público, pois tudo que necessitam depende ainda de muita luta e muitas vezes de judicialização, recorrendo com frequência às Defensorias Públicas, Ministério Público ou advogados particulares.

Não há dúvidas que todos os direitos devem ser garantidos para as pessoas com TEA, já que elas devem estar incluídas em todos os espaços. Assim, há que se garantir apoios nas escolas, atendimento especializado na saúde, benefícios assistenciais, mobilidade nas cidades, moradia para vida independente, residências inclusivas, entre outros tantos direitos. E cada indivíduo deve ser considerado a partir das suas características especificas e em relação às barreiras que enfrenta.

Mas, passados 10 anos da Lei 12.764/12, sequer há implementação efetiva de política pública de direitos sociais mais básicos como saúde, educação e assistência social. Diariamente, na Defensoria Pública do Estado de São Paulo, recebemos famílias e pessoas autistas que denunciam violação de seus direitos. A ação civil pública continua ainda sendo executada coletivamente em São Paulo, acompanhada pela Defensoria e pelo Ministério Público; também não faltam execuções individuais visando garantir atendimento adequado nas diversas áreas.

O que percebemos é que na área da saúde, conforme o Decreto que regulamentou a Lei 12.764/12, o atendimento via Sistema Único de Saúde (SUS) para pessoas com TEA foi atribuído a duas redes de atendimento (Rede de Atenção Psicossocial e Rede de cuidados à Saúde da Pessoa com Deficiência). São duas redes que não possuem um olhar específico para atendimento do autismo e que nem sempre trabalham conjuntamente para garantir o atendimento necessário. Não faltam reclamações de diagnósticos ainda tardios em razão da falta de profissionais especializados e de terapias que são realizadas de forma coletiva e por tempo extremamente reduzido ou, ainda, de “alta” após poucas sessões. Para os locais de atendimento especializado sobram filas de espera, com mais de centena de pessoas com TEA aguardando uma vaga para atendimento.

Na área da educação, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva não prevê de forma clara apoios dentro da sala de aula, o principal apoio da Política é baseado especialmente no atendimento educacional especializado (AEE) prestado na sala de recursos multifuncional no contraturno. Dessa forma, o único apoio garantido dentro da sala de aula acaba sendo de um acompanhante especializado previsto na Lei 12764/12. Porém, a profissão do acompanhante especializado até hoje não foi regulamentada; ademais, a sua disponibilização e atividades a realizar geram diversas discussões entre as famílias e as escolas, levando atualmente a uma intensa judicialização. 

Na área da assistência social, ainda faltam especialmente centros de convivência e centros-dia para aqueles que são adultos e sequer tiveram acesso à educação inclusiva e a atendimentos terapêuticos e são dependentes para realização das atividades diárias. O serviço de residência inclusiva, que busca garantir moradia para aqueles que já não contam com respaldo da família, ou cujo respaldo está fragilizado, é bastante reduzido e incapaz de atender, no momento, toda a demanda. Da mesma forma, o benefício da prestação continuada (BPC) da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) não atende a todos que dele necessitariam, sendo ainda muito restrito.

Somam-se à violação desses direitos a falta de políticas públicas de moradia, transporte, lazer, cultura e esporte, o que gera sofrimento e muita dor, notadamente daqueles que não têm condições de custear quaisquer serviços de forma privada.

O movimento pela luta dos direitos das pessoas com autismo já mostrou sua força, seja na própria aprovação da Lei 12.764/12, seja na aprovação da Lei 13.977/20 e, mais recentemente, na luta pela garantia do rol exemplificativo da Agência Nacional de Saúde (ANS), que foi encabeçada especialmente por familiares de pessoas com TEA e que se converteu numa conquista não só para pessoas com deficiência, mas para toda a sociedade. 

Assim, em termos de mobilização popular e de informação para a sociedade, certamente avançamos muito. O autismo hoje é muito mais conhecido do que há 12 anos, quando comecei a trabalhar na área dos direitos das pessoas com deficiência, e esta conquista veio por meio de centenas de pessoas, especialmente familiares de pessoas com TEA, que se engajaram de corpo e alma nessa luta. Avançamos muito na formação de profissionais com cursos em vários Estados do país e com cartilhas sobre direitos e identificação de sinais precoces. Porém, ainda engatinhamos em políticas públicas que possam de fato garantir qualidade de vida e dignidade para as pessoas com TEA e suas famílias, principalmente as mais vulneráveis, público-alvo da Defensoria Pública, que dependem totalmente do serviço público para efetivação de seus direitos sociais mais básicos. 

Diante disto, a união dos movimentos de familiares e de autistas, bem como de profissionais é essencial para que possamos continuar avançando; mas não só, É importante a união com outros segmentos do movimento de pessoas com deficiência, já que algumas das lutas são idênticas e ganharão com a soma de esforços. 

Apesar da falta, ainda, de políticas públicas efetivas, temos que continuar acreditando que a mobilização popular tem poder de transformação da realidade e não podemos perder a esperança de um futuro mais inclusivo para pessoas com TEA.

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Defensora pública do Estado de São Paulo, doutora e mestre em Distúrbios do Desenvolvimento e pós-doutoranda em Educação Especial.

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