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Neste primeiro capítulo da série de reportagens sobre a mulher autista e lenda do rock Courtney Love, conheça detalhes sobre a infância e o diagnóstico da vocalista do grupo Hole, e viúva de Kurt Cobain, indicada a três prêmios Grammy.
Hiperfoco e crises na infância
Nascida em 09.jul.1964, Courtney Love se afastou do pai, Hank Harrison, um ex-editor do Grateful Dead que, mais tarde, se tornou escritor de livros sobre a filha. Em 1970, Linda, mãe de Courtney, e outras ex-companheiras de Hank o acusaram de dar ácido à filha pequena, além de ameaçar fugir com ela para outro país. Hank perdeu a guarda da menina em audiências, mas negou as acusações. Assim, Courtney passou a infância em comunidades hippies dos Estados Unidos, junto à mãe. Nessa época, observou que a sua principal companhia foram os livros, o que configurou como primeiro hiperfoco Não à toa, autores como William Shakespeare, Charles Baudelaire e T.S. Eliot foram citados futuramente como inspirações para as letras compostas por ela.
Foi nessa época que Linda se casou com Frank Rodriguez, o padrasto que manteve uma relação muito saudável e profunda com a enteada, chegando a acompanhar a trajetória de Courtney no futuro e a demonstrar orgulho por ela. Além disso, ele adotou legalmente Courtney e, mesmo quando veio o divórcio com Linda, manteve a guarda da menina. No entanto, não foi viável manter a guarda da criança devido às crises de agressividade que ocorriam quando ela interagia com as outras filhas de Frank e sua nova esposa.
A mãe
De acordo com a mãe, Linda Carroll, Courtney tinha a expressão facial de um guerreiro aos dois anos de idade, recebeu prescrição de sedativos para insônia quando era criança, inventou histórias sobre ser perseguida no jardim de infância e, aos oito anos de idade, ficou desesperada com pensamentos sobre a morte. “Courtney veio ao mundo com um temperamento muito desafiador desde o início”, diz Carroll. “Mas meu estilo de vida caótico contribuiu para isso”, reflete a mãe. Ainda assim, Linda jura que fez o possível para cuidar da filha e credita o tormento interno de Courtney à biologia. Quando jovem, Courtney parecia fora de controle, atormentada por ataques de gritos, medos estranhos, pesadelos bizarros e uma solidão extenuante.
A escola era um pesadelo, exceto pelo dia em que Courtney disse alegremente que encontrou sua primeira amiga na primeira série, uma garotinha sueca. “Foi um momento culminante”, diz Linda. “Todos os dias ela descrevia a comida e as roupas de Ingrid, com uma capacidade descritiva incrível.” Mas, abruptamente, Ingrid, a amiga, se voltou contra Courtney, tornando-se má. “Eu disse: ‘Você quer que eu vá falar com a professora, querida?’ E ela disse: ‘Sim, por favor, mamãe, fale com a professora; descubra por que a sueca me odeia.”
A professora disse: “Sinto muito dizer isso, mas não existe nenhuma garota sueca.’” Eles fizeram uma breve aula sobre a Suécia. “A parte dessa história que é tão extraordinária para mim é que Courtney ficou muito feliz por eu ir”, diz Linda. “Se ela soubesse que estava mentindo, diria: ‘Ah, não, mamãe, não fale com a professora’. Mas era como se ela acreditasse na história.” Hank, que não tem contato com Linda ou Courtney, diz sobre sua filha: “Ela vivia em um mundo de fantasia”. Courtney Love era considerada uma criança irritadiça e extremamente introvertida, além de apresentar atraso na fala, começando a se comunicar pela linguagem oral com quatro anos de idade. Mas, consciente da demora para a menina falar, a mãe já a levava a psiquiatras e psicólogos desde os três anos de idade. Segundo Linda Carrol, Love era uma criança rebelde, tão impossível de controlar que ela se sentiu forçada a desistir da filha.
Na escola
Tudo se complexificou quando Courtney entrou na escola. Isso porque ela apresentou dificuldades de aprendizado e de socialização, justamente por ser muito tímida. Aos nove anos, então, veio o diagnóstico que nos termos da época pode ser definido como: “autismo clássico de alto funcionamento”. Essa conclusão médica avaliou tanto o atraso na fala quanto às dificuldades de socialização e comportamento da jovem, além de questões sensoriais, como a defensividade tátil que ela apresentava. Tal característica refere-se a respostas observáveis negativas ou aversivas a alguns tipos de experiência tátil que a maioria das pessoas não considera desagradável ou dolorosa. Além disso, de acordo com Hank, Courtney tinha “memória fotográfica e um QI de gênio”. Todo esse contexto pode ser observado em uma das primeiras composições famosas da autora, a música Retard Girl, sobre uma menina que é vista de maneira pejorativa pelos colegas de classe:
“Garota retardada que nos dá nojo. Retardada, cutuquem-na com um pedaço de pau. Ela anda de um modo engraçado. Meio parecido com um porco. Deus, eu odeio aquela garota retardada. Vejam a garota retardada andando no pátio. Com o mesmo vestido da quarta série. Procurando a amiga que ela fez. Não esquecem a cara dela. Como brilha a lua entre as menores chamas. Ela está chupando um pau no pátio. Todas as garotas retardadas andam engraçado. Ela não pensa como as outras. Vejam a garota retardada contorcendo-se na lama. Joguem ela na lata de lixo. Vejam o que ela faz. Eu perguntei à mãe dela: por que você precisa implodir? A cabeça dela é tão grande que poderia explodir. Batam nela! Vejam a garota retardada fitando o sol. O que ela vê? Vejam ela encarando todo mundo. Espero que ela não me veja. Não a joguem fora”.
Nessa composição, Courtney Love deixa claro de forma agressiva e sem romantizar o cotidiano de uma menina autista adolescente em um colégio. O sujeito lírico parece ser alguém que está criticando e debochando de uma jovem que parece ser a própria Courtney. Dessa forma, aparecem algumas das características que se evidenciam mais profundamente na adolescência de autistas. Um exemplo disso são as dificuldades sensório-motoras ligadas ao sistema vestibular, que é responsável por conferir equilíbrio ao corpo, o que explicaria o modo peculiar como ela anda. Outro aspecto que a letra deixa perceptível é a preferência por usar a mesma roupa desde a quarta série. Afinal, essa rigidez comportamental relacionada ao vestuário é bastante comum entre autistas, principalmente os mais jovens, que não tem tantos limitadores externos ou profissionais para vestir sempre a mesma roupa. Além disso, Retard Girl retrata o bullying que ainda hoje, mesmo com legislação e conhecimento crítico a respeito do assunto, ainda é uma experiência comum aos autistas. Essa agressão vem por meio dos comentários maldosos dos colegas sobre as diferenças da jovem.