3 de março de 2025

Tempo de Leitura: 3 minutos

Um arrepio me percorre pela espinha quando me lembro da terapia que escolhi para minha filha autista. Já se passaram 14 anos, desde quando a terapia do bem se deu mal. Às vezes, parece que luto contra a maré, na relação com minha filha. Dessa forma, posso quase ouvir uma voz em meu cérebro. Ela vem toda vez que busco uma solução para alguma aflição dela. Essa busca é algo automático para meu cérebro neurodivergente. Todo problema precisa de uma solução. Mas a vozinha me lembra: “Você tem o direito de ficar calada. Tudo o que você disser será usado contra você.”

A escolha da psicóloga e do psiquiatra

Quando recebi o diagnóstico de minha menina, em 2008, só o consegui por causa do único psiquiatra que entendia do assunto. Aliás, foi ele que me indicou a psicóloga para o acompanhamento. Estava tranquila, pois eram os melhores, à época. Hoje sei que, para ser o melhor, é preciso de uma série de características. Exemplos de algumas:

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  • Empatia: psicóloga ok psiquiatra: 0
  • Conhecimento sobre autismo: psicóloga ok psiquiatra: ok
  • Conhecimento sobre condições coexistentes: psicóloga: um pouco psiquiatra: um pouco
  • Humanismo: psicóloga ok psiquiatra: 0
  • Preço acessível: psicóloga ok psiquiatra: 0
  • Boa relação e escuta com o paciente: psicóloga ok psiquiatra: 0
  • Visão anti capacitista: psicóloga: um pouco psiquiatra: 0

Terapia do bem é boa, mas pode se dar mal

Então, como disse à época, não foi possível escolher outros profissionais. Havia poucos deles voltados ao Transtorno do Espectro do Autismo – TEA. Entretanto, me considerava com boa sorte. Escolhi a terapia do bem e não me daria mal. Puro engano. Quando o assunto gênero e sexualidade vieram à tona, na adolescência, tudo mudou. Esses dois conceitos foram confundidos pelos dois profissionais. Eles acreditavam que eram palavras sinônimas. Mas não eram.

Sexualidade é a forma como uma pessoa vivencia e expressa a atração sexual por outras pessoas. É uma parte normal da experiência humana.

Transgeneridade é a identidade de gênero de uma pessoa que difere do sexo que atribuído a ela ao nascer. O termo é abrangente e pode incluir pessoas não-binárias.

Essa confusão resultou em traumas que atormentam minha filha até hoje.

Tudo o que você fizer ou disser será usado contra você

Assim, minha filha, ainda adolescente, me cobrava pela atuação do psiquiatra e da psicóloga. Eles não a entendiam sobre a não identificação com o gênero designado no nascimento. Foi quando, inclusive, o psiquiatra sugeriu um psicólogo homem. Mais um trauma para quem se identificava como mulher. Além disso, eles desmereciam o que ela falava, dando peso menor a seus sentimentos.

Passei esses anos todos defendendo a psicóloga. Para tanto, expliquei a minha filha que naquela época, o assunto era pouco conhecido. Mas minha filha retrucava que esses profissionais deviam ter estudado mais ou admitido a falta de preparo técnico. Ou, simplesmente, não deviam contestar o que ela afirmava categoricamente sobre si.

Confesso que, por muito tempo, a culpa me envolveu. Eu deveria ter virado céus e terras à procura de profissionais mais preparados? Foi tão difícil chegar aqueles dois e minhas buscas, pelo google, não me ofereceram as respostas necessárias. Repetia sempre para mim, para me convencer: “Você fez o melhor à época, com as ferramentas que tinha.”

Embora isso fosse verdade, a terapia do bem se deu mal. E todas as minhas escolhas e tentativas de justificar, inclusive os profissionais, se viraram contra mim. Com relação ao psiquiatra, todo senhor de si e de seus saberes e achares, tudo bem. Mas o desejo de fazer mais e melhor, sempre moveu a psicóloga. Infelizmente, isso não foi o suficiente para minha menina.

A terapia do bem se deu mal mesmo

Nesses 14 anos, o assunto retorna nos momentos mais imprevisíveis. Sinto desconforto porque minha filha é uma grande mulher. Além disso, o tema e o que esses profissionais fizeram faz parte do passado. Hoje, na hora do almoço, aconteceu de novo. Reagi com impaciência. “Saco, isso aconteceu há 14 anos”, argumentei com ela. E disse de meu afeto e gratidão com relação à psicóloga.

Entretanto, somente agora, 14 anos depois, ela foi super clara comigo. “Você me fez sentir culpada em relação à minha psicóloga. Penso que eu não devia me sentir assim. Gosto dela e sou grata também. O que não tira do meu peito, não tira do meu ser, a dor e a mágoa que sinto quando me lembro da invalidação, da postergação para enfrentar algo que para mim era a minha própria vida. O psiquiatra chegou a gargalhar em sua cara. São atitudes que me marcaram e que ainda me consomem.” Gelei. Ter empatia é mesmo complicado. Minha filha não vive do passado. É o passado que se transformou em marcas em sua alma.

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Jornalista e relações públicas, diagnosticada com autismo, autora dos livros "Minha Vida de Trás pra Frente", "Dez Anos Depois", "Camaleônicos" e "Autismo no Feminino", mantém o site "O Mundo Autista" no Portal UAI e o canal do YouTube "Mundo Autista".

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