19 de março de 2022

Tempo de Leitura: 25 minutos

No dia 3 de março de 2022 foi promulgada a Lei 14.307/2022, a qual deixou a comunidade autista com muitas dúvidas sobre seus impactos no cenário atual da saúde suplementar. Tentarei nesta análise ser o mais preciso possível em meus argumentos, de modo a tornar a leitura acessível a todas e todos.

Peço a compreensão dos advogados tecnicistas, e que relevem qualquer atecnia nos termos utilizados neste artigo jornalístico, pois o objetivo é atingir o máximo de pessoas possível com uma escrita direta, afinal defendemos a inclusão e a acessibilidade, inclusive das informações.

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É necessário lembrar que, em se tratando de matéria legal, é importante alguns esclarecimentos antes da própria interpretação da legislação em análise, independentemente de posicionamento político-partidário.

Histórico da lei 14.307/2022

A historicidade desta lei surgiu com o Projeto de Lei 6.330/2019, que inicialmente atribuía obrigação dos planos de saúde em providenciar a entrega da quimioterapia oral em um prazo de 48 horas, no entanto tal projeto sofreu veto presidencial e este veto não foi derrubado pelo Congresso Nacional. Em seguida foi criada a Medida Provisória 1.067/2021, que foi aprovada em fevereiro pelo Congresso Nacional e publicada após a sanção presidencial no Diário Oficial da União de sexta-feira, 4 de março, e que se encontra atualmente em vigor para surtir os seus efeitos legais.

Para esclarecimento geral, segundo texto do site do próprio Congresso Nacional, de acesso livre no link: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/entenda-a-tramitacao-da-medida-provisoria, as Medidas Provisórias são definidas como: “Normas com força de lei editadas pelo Presidente da República em situações de relevância e urgência. Apesar de produzir efeitos jurídicos imediatos, a MPV [MP] precisa da posterior apreciação pelas Casas do Congresso Nacional (Câmara e Senado) para se converter definitivamente em lei ordinária”. Tal instrumento é regulamentado pela nossa lei maior, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 62 e seguintes. Ou seja, é uma lei que passa a ter efeitos imediatos por ato exclusivo do Presidente da República, mas que precisa ser confirmada no Congresso Nacional.

A finalidade da lei de 2022 é: “Altera(r) a Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, para dispor sobre o processo de atualização das coberturas no âmbito da saúde suplementar”. É uma que lei serve para regulamentar a Lei de 1998 que criou as regras para os planos e seguros privados de assistência à saúde. Além disso, também alterou o texto do artigo 10 §§4º a 11º, artigo 12 §5º e criou o artigo 10-D. No artigo 3º a lei de 2022 determina que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) deverá dar cumprimento à Lei em 180 dias da sua promulgação, ou seja, contando a partir de 04 de março de 2022. 

Sistema regulatório nacional

O surgimento do sistema regulatório nacional, por meio de agências reguladoras, se deu na reforma do Estado Brasileiro em 1994, com a privatização de várias empresas públicas, dando ao setor privado o direito de explorar economicamente aquelas áreas que eram exclusivamente da União, sendo eles o mercado de telecomunicações, que é regido pela Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), o setor de Distribuição de Água, regulamentada pela Agência Nacional das Águas (ANA), o setor de Energia Elétrica, regulamentada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), o setor de saúde suplementar, ou seja planos de saúde e seguro saúde, regulamentadas pela ANS, que foi criada pela Lei nº 9.961/2000.

Estas agências foram criadas, pois o Estado Brasileiro precisava manter o controle (ou o termo correto, regulação) de setores essenciais para a sociedade, o que foi delegado ao setor particular. Logo, as agências reguladoras são Autarquias Federais de caráter especial, com a finalidade de regular um determinado setor para evitar desproporções entre as empresas e os consumidores. Esta informação é importante, pois, mais à frente, irei retornar a este assunto das desproporções.

Especificamente acerca da ANS, para que um procedimento médico ou terapêutico passe a ser de cobertura obrigatória dos planos de saúde, é necessário apresentar uma proposta à agência e fundamentar o pedido de incorporação desta tecnologia em saúde ao denominado ROL DA ANS, ao qual será necessário um procedimento administrativo para embasar a decisão do órgão sobre a incorporação ou não deste procedimento.

Como se percebe, é algo extremamente burocrático e que jamais poderá acompanhar a velocidade dos estudos em saúde e, muito menos, a vida das pessoas podem esperar por um procedimento administrativo da ANS para decidir se o plano é ou não obrigado a custear determinado tratamento, e é por isto que a matéria é levada com recorrência ao judiciário, pois o direito à vida se sobrepõe, na hierarquia da norma constitucional, aos interesses econômicos das operadoras de plano de saúde.

O que realmente mudou com a lei

Vamos iniciar pelos pontos positivos. Primeiramente a lei 14.307/2022 trouxe ganhos às pessoas que realizam tratamento para o Câncer e uso de quimioterapia, pois ficou determinado que é obrigação do plano de saúde custear quimioterapia domiciliar de uso oral, essenciais para o tratamento de pessoas com Câncer, dentro do prazo de 10 dias:

Art. 10. É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei, exceto: (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001)
§ 6º As coberturas a que se referem as alíneas c do inciso I e g do inciso II do caput do art. 12 desta Lei são obrigatórias, em conformidade com a prescrição médica, desde que os medicamentos utilizados estejam registrados no órgão federal responsável pela vigilância sanitária, com uso terapêutico aprovado para essas finalidades, observado o disposto no § 7º deste artigo. (Incluído pela Lei nº 14.307, de 2022)
Art. 12. São facultadas a oferta, a contratação e a vigência dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º desta Lei, nas segmentações previstas nos incisos I a IV deste artigo, respeitadas as respectivas amplitudes de cobertura definidas no plano-referência de que trata o art. 10, segundo as seguintes exigências mínimas:       (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001)
I – quando incluir atendimento ambulatorial: […]
c) cobertura de tratamentos antineoplásicos domiciliares de uso oral, incluindo medicamentos para o controle de efeitos adversos relacionados ao tratamento e adjuvantes; (Incluído pela Lei nº 12.880, de 2013)      (Vigência)
[…]
II – quando incluir internação hospitalar: […] g) cobertura para tratamentos antineoplásicos ambulatoriais e domiciliares de uso oral, procedimentos radioterápicos para tratamento de câncer e hemoterapia, na qualidade de procedimentos cuja necessidade esteja relacionada à continuidade da assistência prestada em âmbito de internação hospitalar; (Incluído pela Lei nº 12.880, de 2013). “
Art. 12…………………………………………………………………………….
§ 5º O fornecimento previsto nas alíneas “c” do inciso “I” eg. do inciso II do caput deste artigo dar-se-á em até 10 (dez) dias após a prescrição médica, por meio de rede própria, credenciada, contratada ou referenciada, diretamente ao paciente ou ao seu representante legal, podendo ser realizado de maneira fracionada por ciclo, sendo obrigatória a comprovação de que o paciente ou seu representante legal recebeu as devidas orientações sobre o uso, a conservação e o eventual descarte do medicamento.” (NR)

Outro ponto positivo foi em relação ao prazo para a análise de incorporação de novos procedimentos pela ANS, que deve ser de 180 dias, divididos em 120 inicias e com prorrogação única por mais 60 dias. Caso a análise não seja concluída pela agência, este procedimento passará a ser de cobertura obrigatória dos planos, sem prejuízos futuros a quem iniciou o tratamento.

Art. 10. …………………………………………………………………………..
§ 7º A atualização do rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar pela ANS será realizada por meio da instauração de processo administrativo, a ser concluído no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contado da data em que foi protocolado o pedido, prorrogável por 90 (noventa) dias corridos quando as circunstâncias o exigirem.
§ 8º Os processos administrativos de atualização do rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar referente aos tratamentos listados nas alíneas “c” do inciso I eg. do inciso II do caput do art. 12 desta Lei deverão ser analisados de forma prioritária e concluídos no prazo de 120 (cento e vinte) dias, contado da data em que foi protocolado o pedido, prorrogável por 60 (sessenta) dias corridos quando as circunstâncias o exigirem.
§ 9º Finalizado o prazo previsto no § 7º deste artigo sem manifestação conclusiva da ANS no processo administrativo, será realizada a inclusão automática do medicamento, do produto de interesse para a saúde ou do procedimento no rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar até que haja decisão da ANS, garantida a continuidade da assistência iniciada mesmo se a decisão for desfavorável à inclusão.

Mais um ponto importante está ligado à incorporação de procedimentos que já tenham sido avaliados e façam parte dos procedimentos obrigatórios do SUS, pois aqueles procedimentos que passarão a ser obrigatórios ao Sistema Público, passarão também a ser obrigatórios para os planos de saúde, em um prazo de 60 dias.

Art. 10. ………………………………………………………………………….. § 10. As tecnologias avaliadas e recomendadas positivamente pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), instituída pela Lei nº 12.401, de 28 de abril de 2011, cuja decisão de incorporação ao SUS já tenha sido publicada, serão incluídas no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar no prazo de até 60 (sessenta) dias.

Adiante na análise, o parágrafo 11 do artigo 10 estabelece que para o procedimento administrativo federal oriundo da Lei nº 9.784/1999, que é um procedimento obrigatório ao processo decisório da ANS, será necessário realizar consulta pública para ouvir todas as partes e possibilita, ainda, apresentação de recurso após a divulgação do relatório final, que decidirá pela incorporação ou não de um novo procedimento no rol de cobertura obrigatória da ANS.

§ 11. O processo administrativo de que trata o § 7º deste artigo observará o disposto na Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, no que couber, e as seguintes determinações:
[…]
IV – realização de audiência pública, na hipótese de matéria relevante, ou quando tiver recomendação preliminar de não incorporação, ou quando solicitada por no mínimo 1/3 (um terço) dos membros da Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar;
V – divulgação do relatório final de que trata o § 3º do art. 10-D desta Lei da Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar; e
VI – possibilidade de recurso, no prazo de até 15 (quinze) dias após a divulgação do relatório final.” (NR)

Este parágrafo foi de extrema importância, uma vez que esta possibilidade de ser ouvido em consulta pública, que deverá ter ampla divulgação, facultada a possibilidade de apresentar documentos à comissão que analisará o procedimento e a possibilidade de recurso do relatório final de incorporação, até então não existia em previsão legal até a promulgação da lei. Ou seja, no procedimento anterior só eram ouvidos técnicos da ANS ou quem ela determinasse que seriam ouvidos, porém com esta lei a comunidade científica poderá ser ouvida e ter seus argumentos expostos.

Outro ponto relevante foi a criação de uma Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, que auxiliará no processo decisório de incorporação de novos procedimentos de custeio obrigatório pelos planos de saúde. Esta comissão será formada por:

Art. 10-D. Fica instituída a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar à qual compete assessorar a ANS nas atribuições de que trata o § 4º do art. 10 desta Lei.
I – 1 (um) representante indicado pelo Conselho Federal de Medicina;
II – 1 (um) representante da sociedade de especialidade médica, conforme a área terapêutica ou o uso da tecnologia a ser analisada, indicado pela Associação Médica Brasileira;
III – 1 (um) representante de entidade representativa de consumidores de planos de saúde;
IV – 1 (um) representante de entidade representativa dos prestadores de serviços na saúde suplementar;
V – 1 (um) representante de entidade representativa das operadoras de planos privados de assistência à saúde;
VI – representantes de áreas de atuação profissional da saúde relacionadas ao evento ou procedimento sob análise.

Reparem que os critérios são objetivos em relação a cada representante de cada órgão que participará do comitê, tornando mais difícil decisões unilaterais que beneficiam alguns em detrimento de outros, e que além desta especificidade, deverão ter formação técnica específica para tratar daquele procedimento em análise.

Art. 10-D………………………………………………………………………….
§ 4º Os membros indicados para compor a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, bem como os representantes designados para participarem dos processos, deverão ter formação técnica suficiente para compreensão adequada das evidências científicas e dos critérios utilizados na avaliação.

Além deste critério objetivo, outro surge com igual importância, contido no parágrafo 3º do art. 10 da lei:

Art. 10-D………………………………………………………………………….
§ 3º A Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar deverá apresentar relatório que considerará:
I – as melhores evidências científicas disponíveis e possíveis sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade, a eficiência, a usabilidade e a segurança do medicamento, do produto ou do procedimento analisado, reconhecidas pelo órgão competente para o registro ou para a autorização de uso;
II – a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às coberturas já previstas no rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, quando couber; e

No final do procedimento administrativo, que determinará se o procedimento em saúde será ou não incorporado pela ANS no rol de cobertura obrigatória pelos planos de saúde, será necessário a apresentação de um relatório técnico que contenha critérios objetivos em relação à fundamentação da decisão tomada pelo comitê, sendo eles os critérios de evidências científicas e viabilidade econômica.

Ao nosso ver, estes foram os pontos positivos da lei, porém nem tudo são flores, uma vez que os primeiros artigos trazem carga de subjetividade que podem ser prejudiciais no futuro próximo, senão vejamos:

Art. 10. ……………………………………………………………………………
§ 4º A amplitude das coberturas no âmbito da saúde suplementar, inclusive de transplantes e de procedimentos de alta complexidade, será estabelecida em norma editada pela ANS.
§ 5º As metodologias utilizadas na avaliação de que trata o § 3º do art. 10-D desta Lei, incluídos os indicadores e os parâmetros de avaliação econômica de tecnologias em saúde utilizados em combinação com outros critérios, serão estabelecidas em norma editada pela ANS, assessorada pela Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, e terão ampla divulgação.
Art. 3º A ANS editará normas para o devido cumprimento desta Lei no prazo de 180 (cento e oitenta) dias.

Os parágrafos 4º e 5º do artigo 10 deixam a cargo da ANS a edição de norma específica para que os efeitos da lei de 2022 comecem a valer na prática, tendo a agência o prazo de 180 dias para isto, bem como aqueles critérios objetivos que foram colocados como pontos positivos, passaram a ser determinados pela agência, e tudo que depender da ANS deve ser visto com um olhar mais crítico, pois trata-se de um órgão aparelhado para defender os interesses dos planos de saúde, o que no direito chamamos de Fenômeno da Captura. 

Explicando acerca do Fenômeno da Captura da ANS e como isto é prejudicial para todo o setor da saúde suplementar e para o direito à saúde da população brasileira, compartilho um trecho do artigo que escrevi especificamente sobre este assunto, demonstrando que não é algo novo, muito menos recente, nem exclusivamente do direito brasileiro:

Sobre o fenômeno da Captura de Agentes nos órgãos reguladores, há uma vasta literatura no direito americano, de autores de renome internacional, tais como Coase, Williamson, Laffont, Tirole, Kahn, North, entre outros da nova economia institucional. Sua conceituação simplificada pode ser considerada, segundo Chiganer, Ribeiro, de Mello e Biondi Neto (2002, p. 6):
[…].sempre que a Agência confunde o interesse público com o interesse da indústria, diz-se que ela foi capturada pela indústria. É evidente que a corrupção é uma forma de captura, sem dúvida a mais conhecida da população brasileira. Mas há outras formas de captura como: o órgão regulador dispor de quadros técnicos de pior qualificação e com remuneração inferior a dos técnicos da empresa regulada, ou como no caso brasileiro, o órgão regulador tendo como uma das suas funções primordiais incentivar o processo de licitações de usinas e transmissão. Além disso, foram os próprios técnicos das empresas reguladas que definiram as regras, normas, portarias e outras coisas mais para elas mesmas. Tais fatos geram, ou uma dependência do órgão regulador às empresas reguladas ou uma impossibilidade prática dos técnicos do órgão regulador contestarem consistentemente as argumentações da empresa regulada.(1)

Neste aspecto institucional, precisaremos entrar em outra questão delicada, pois a própria agência já editou norma que determina que o rol de procedimentos é taxativo, ou seja, só tem cobertura obrigatória aqueles procedimentos que estão contidos no rol, segundo o artigo 2º da Resolução Normativa 465/2021:

Art. 2º Para fins de cobertura, considera-se taxativo o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde disposto nesta Resolução Normativa e seus anexos, podendo as operadoras de planos de assistência à saúde oferecer cobertura maior do que a obrigatória, por sua iniciativa ou mediante expressa previsão no instrumento contratual referente ao plano privado de assistência à saúde.

Repare que o interesse da agência é pelo rol taxativo, justamente por defenderem os interesses dos planos de saúde, porém, em momento algum da Lei nº 14.307/2022 fica evidenciado, ou mesmo implícito, que o rol será obrigatoriamente taxativo, nem mesmo deu “super poderes” à ANS com crivo de uma lei federal. Isto precisa ficar claro, pois as regras da agência não são absolutas ou imutáveis, uma vez que elas não podem ir contra o ordenamento jurídico como um todo e muito menos contra as decisões judiciais. 

Ocorre que a Lei não mudou o cenário jurídico que existe há 20 anos! Para os leigos, significa dizer que nas duas últimas décadas a ANS entende pelo rol taxativo e os beneficiários buscam os tratamentos negados administrativamente na justiça, alegando o rol ser exemplificativo e que o direito à vida deve se sobrepor aos interesses financeiros dos planos, por determinação da Constituição Federal de 1988. Esta ordem hierárquica entre o direito à vida e o interesse econômico, só poderá mudar com uma nova Constituição, da qual não se enxerga qualquer possibilidade disto acontecer. Mais uma vez, a Lei de 2022 não mudou este cenário, que continua inalterado, até decisão posterior do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em relação a esta posição a advogada Carla Bertin, criadora do @Autismolegal, maior canal de conteúdo jurídico para autistas do Brasil, também pactua com o entendimento:

Rol da ANS: um assunto que há 20 anos vem sendo tratado da mesma forma, como um exemplo de cobertura mínima pela Saúde Suplementar, mas que repente nos surpreendeu com o STJ – Superior Tribunal de Justiça revendo esse entendimento tão consolidado.
Como se isso não bastasse, poucos dias após o início e suspensão do julgamento foi publicada a Lei 14307/2022 e muitas pessoas entenderam esta lei como uma declaração legal de que o Rol da ANS é taxativo, entretanto, esta lei não fala em momento algum sobre a taxatividade ou exemplificidade do Rol. 
A ANS sempre se comportou como se o Rol fosse taxativo, por este motivo existem tantos pedidos judiciais de análise e concessão de procedimentos, terapias, medicações, exames, etc, que são necessários, devidamente prescritos pelo profissional da área médica e com evidências científicas de sua efetividade para o caso concreto. Entendo que o momento não é de desespero por perdas de direito, pois eles não foram retirados, mas também não podemos relaxar. Agora é hora de nos mantermos atentos quanto aos próximos passos e regulamentações desta lei.
O mais importante é não esquecermos que o Direito a Saúde é garantido na nossa Constituição Federal e também pela Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de forma universal e integral, isto é, para todos, independente de renda, com ações preventivas e curativas, individuais e coletivas e um órgão fiscalizador e regulamentador, ANS – Agencia Nacional de Saúde Suplementar, não pode limitar o que a nossa Constituição garante a todos.
Somente como último, mas não menos importante detalhe: caso haja qualquer tentativa de limitação da prestação de serviços de saúde, temos o STF, Supremo Tribunal Federal, que protege nossa Constituição e com certeza tomará providências para que a mesma continue sendo soberana.
Carla Bertin (@AutismoLegal), 17/03/2022.

Cabe alertar que precisamos ficar atentos ao que depender de regulamentação da ANS, pois ela tenderá a beneficiar os interesses dos planos de saúde, utilizando artifícios legais de extrema sofisticação e todo o lobby político junto ao Congresso Nacional, assim como foi feito na lei de 2022, buscando manter os interesses econômicos dos planos de saúde, independentemente da decisão que o STJ tomará sobre a taxatividade ou não do rol da ANS.

Mas não somente o lobby político faz parte da estratégia dos planos de saúde, pois esta influência também chega às instâncias superiores da justiça, basta analisar o entendimento do ministro do STJ Luís Felipe Salomão, que é pela taxatividade do rol da ANS, e que limitaria o acesso a muitos procedimentos médicos que são atualmente conseguidos na justiça. Segundo o entendimento dele, no julgamento que tratarei mais à frente, o mesmo fez menção clara, à época, à medida provisória, que agora virou lei:

Salomão destacou que a Lei 9.961/2000, que criou a ANS, estabeleceu a competência da agência para a elaboração do rol de procedimentos de cobertura obrigatória. Ele também apontou que a Lei dos Planos de Saúde (Lei 9.656/1998), em seu artigo 10º, parágrafo 4º – cuja redação mais recente foi dada pela Medida Provisória 1.067/2021 –, prevê que a amplitude das coberturas no âmbito da saúde suplementar, inclusive de transplantes e de procedimentos de alta complexidade, será estabelecida em norma editada pela ANS (veja o voto completo).

Repare que eu falei de lobby na relação política com o Congresso Nacional, falei em interferência direta no entendimento de um ministro do STJ e havia falado sobre Captura na ANS, ou seja, nas três esferas do poder: no Executivo, pois foi o presidente da república que propôs a Medida Provisória, no Legislativo, pois o Congresso Nacional aprovou a MP e a converteu em Lei, e no Judiciário, pois o entendimento do ministro Salomão entende pela taxatividade do rol da ANS. 

E este poder de influência dos planos de saúde vai muito além, pois atinge diretamente a Administração Pública Indireta, por meio do aparelhamento da ANS para defender os interesses econômicos dos planos, o que no Direito chamamos de Fenômeno da Captura, basta verificar o histórico de presidentes da agência, o atual é um Advogado que representava 70 operadoras de plano de saúde junto à ANS, o anterior a ele era Presidente do Sindicato dos Hospitais Privados do Rio de Janeiro, e por aí vai.

Neste aspecto, cito as minhas palavras finais no artigo: “Dificuldades enfrentadas pelos advogados na defesa dos direitos dos beneficiários frente ao fenômeno da captura na Agência Nacional de Saúde Suplementar” publicado na Revista Temática da OAB/OLINDA em 2021, antes mesmo da promulgação da medida provisória, e que trato sobre o fenômeno da captura na ANS:

Desta forma, os advogados e o judiciário possuem um papel fundamental na mitigação dos efeitos da captura no setor da saúde suplementar, pois, segundo a hierarquia das normas, as resoluções não podem se sobrepor as leis e jurisprudências específicas ao caso. Logo, quando um plano de saúde justifica a negativa de um tratamento, exclusivamente se baseando nas regras da ANS, ela não age no exercício regular do direito, pois ao desconsiderar as outras fontes do Direito hierarquicamente superior, para embasar a negativa, ela está assumindo um risco econômico de ter sua negativa revogada em processo judicial, e, consequentemente, deverá custear o tratamento outrora negado.(2)

Portanto, é necessário analisar a legislação no contexto sistêmico do Direito, a fim de avaliar os reais efeitos da mesma para todos os brasileiros, sejam eles beneficiários de plano de saúde ou não, pois esta lei não mudou o cenário institucional regulatório em que é a ANS que define as regras na saúde suplementar!

Taxatividade x exemplificidade e o julgamento do STJ

O papel da ANS é regular o setor da saúde suplementar, então, desde 2000 este papel é feito pela agência reguladora, que é responsável por criar e editar o rol de procedimentos obrigatórios para cobertura dos planos de saúde, ou seja, aqueles procedimentos em saúde que devem ser obrigatoriamente custeados pelos planos de saúde. 

E é exatamente neste ponto que surge a principal discussão em Direito da Saúde, pois existe a discussão que está sendo apreciada pelo STJ, no julgamento dos EREsp 1886929 e EREsp 1889704, quanto aos quais já houve dois votos, um pela taxatividade e outro pela exemplificidade deste rol de procedimentos obrigatórios.

Mas afinal, o que significa ter o rol taxativo ou exemplificativo? Iniciando pelo que entendemos ser a mais prejudicial, atestar que o rol será taxativo significa dizer que somente os procedimentos que constam no rol da ANS deverão ser cobertos pelos planos de saúde, colocando o consumidor em uma posição de desvantagem, pois quando se assina um contrato de saúde, não é possível prever que tipo de doenças serão acometidas ao longo da vida, mas os procedimentos que deverão ser custeados serão limitados ao que está no rol, ou seja, o cidadão leigo deverá ter conhecimento para entender o que significam os termos médicos dos mais de 3000 procedimentos constantes neste rol, o que beira a um trabalho de Hércules.

Para se ter um exemplo da dimensão da prejudicialidade em ter o rol taxativo, basta analisar as terapias que são obrigatórias no rol em relação ao autismo: Psicologia, Fonoaudiologia, Terapia Ocupacional e Fisioterapia em sessões ilimitadas. Repare que em nenhum momento o rol se pronuncia acerca do tipo de terapia, pois a ciência da Análise do Comportamento Aplicado (ABA), nem os métodos PROMPT, TEACCH, PECS, Integração Sensorial, nem a Psicopedagogia, Psicomotricidade, Hidroterapia, Musicoterapia, e Equoterapia constam no rol da ANS. Portanto, as terapias que são indicadas pelos neuropediatras e que possuem evidências científicas robustas para o tratamento multidisciplinar do TEA, não seriam custeadas pelos planos, pois, segundo o entendimento do rol taxativo, o plano precisaria ofertar apenas o terapeuta e não a modalidade. 

Agora pense comigo, médico é tudo igual? O que um cardiologista faz é o mesmo que faz um ortopedista? A resposta é óbvia que não! Então porque as terapias continuadas para o autismo devem ser ofertadas por profissionais generalistas e não por especialistas? Foi possível entender o tamanho do problema em ter o rol taxativo?

Em suma, no universo do autismo, os planos não cobririam o tratamento ABA, e nenhuma metodologia terapêutica específica, e quando fôssemos acionar judicialmente o plano, para cobrir o que consta no laudo médico, os juízes poderiam simplesmente negar, pois o entendimento é que o rol seria taxativo, ou seja, teríamos que nos submeter ao que plano de saúde oferece ou procurar o Sistema Único de Saúde (SUS). E é por este motivo que tal julgamento afeta a todos os brasileiros, pois se àqueles que possuem plano de saúde tiverem que procurar tratamento no SUS, o sistema público, que já é deficitário, teria ainda mais demandas, prejudicando toda a população nacional.

Já conforme o entendimento que compactuamos, e que foi brilhantemente exposto pela ministra Nancy Andrighi, no julgamento dos recursos supra mencionados em 23/02/2022, é que o rol deve ser exemplificativo, ou seja, trata-se de mera indicação de procedimentos, mas que não se esgotam em si. Logo, caso surjam outros procedimentos em saúde ou indicação médica, os planos deverão custear. É o que a maioria dos brasileiros faz, pagam o plano de saúde, para quando um dia precisar, terem a assistência que esperam ter do plano de saúde.

Após o voto da ministra Nancy Andrighi, o ministro Salomão se manifestou afirmando que o rol taxativo protegeria o sistema regulatório e equilíbrio econômico-financeiro, pois não poderia ser assinado um cheque em branco, ao qual os planos de saúde não poderiam precificar os custos em virtude das eventualidades em saúde e que os casos excepcionais seriam apreciados caso a caso. 

Ocorre que nesta argumentação, o próprio ministro Salomão foi contraditório em seus argumentos, pois ao mesmo tempo que afirma que o rol deve ser taxativo, indica que não haverá perdas de direitos, pois os casos serão analisados caso a caso. Oras, se os casos serão analisados individualmente, não faz sentido fechar as possibilidades de custeio dos tratamentos, sem a apreciação do judiciário, se o entendimento for pelo rol taxativo. Tanto é, que este argumento foi prontamente rechaçado pela ministra Nancy, que afirmou que “Aqui eu não fecho portas”. 

Esta contraposição veio com argumentos mais robustos: 

Contrapondo ao argumento do relator sobre o equilíbrio econômico e financeiro das operadoras, Nancy Andrighi apresentou dados apurados pela ANS de que as empresas mantiveram os lucros nos últimos anos e afirmou que a limitação da cobertura só iria onerar o consumidor, além de permitir o aumento do lucros das operadoras. Andrighi alegou ainda que o Rol elaborado pela ANS apresenta uma linguagem técnico-científica difícil de ser compreendida pelo leigos e que, não há como exigir do consumidor, no momento que ele celebra um contrato de plano, o conhecimento acerca de todos os procedimento que estão ou não incluídos na cobertura (veja o artigo de Karla Gamba (Jota Saúde), em 23.fev.2022: “Nancy Andrighi, do STJ, vota para que Rol da ANS seja exemplificativo“).

E a ministra foi ainda além: “Se os casos serão analisados individualmente, então deixe o rol exemplificativo ministro Salomão, pois eu confio na análise da magistratura nacional”. Ainda falando do voto do ministro Salomão, o mesmo aduz que os casos de autismo não serão afetados pelo julgamento que estava ocorrendo naquele momento, uma vez que a ANS já havia determinado que as terapias para autismo eram ilimitadas, mostrando claramente a força da pressão da comunidade autista sobre os ministros, que fizeram manifestação pacífica na frente do STJ enquanto ocorria o julgamento e o voto da ministra Nancy.

No entanto, este argumento do ministro Salomão é falacioso, pois a nossa briga não é por terapias ilimitadas e sim por tratamento especializado e conforme o laudo médico, o que atualmente só se consegue por determinação judicial, pois nem os planos, nem a ANS determinam o custeio de tratamento para autistas pela ciência ABA, pelos métodos PROMPT, PECS, TEACHH, INTEGRAÇÃO SENSORIAL, PSICOMOTRICIDADE, PSICOPEDAGOGIA, MUSICOTERAPIA, HIDROTERAPIA entre outros que possuem evidência científica robusta no tratamento do TEA devidamente comprovada por instituições como: Conselho Federal de Medicina (CFM); Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP); Academia Brasileira de Neurologia (AMB); Associação Brasileira de Medicina Comportamental (ABPMC); Sociedade Brasileira De Neurologia Infantil (SBNI); Sociedade Brasileira De Pediatria (SBP), entre outras.

Para a Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil (SBNI), o tratamento para o TEA deve se dar por intervenções baseadas na ciência ABA:

O tratamento do TEA caracteriza-se por intervenção precoce através de terapias que visam potencializar o desenvolvimento do paciente (3). Atualmente as terapias com maior evidência de benefício são baseadas na ciência da Análise do Comportamento plicada (ABA – Applied Behavior Analysis), associada a terapias auxiliares, como fonoterapia, terapia ocupacional. Outras abordagens devem ser orientadas de acordo com cada caso individual. O número de horas semanais ou quantidade de terapia por semana deve ser definido por cada profissional (veja a Proposta de Padronização Para o Diagnóstico, Investigação e Tratamento do Transtorno do Espectro Autista, SBNI, 2021).

A Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental (ABPMC), trata da operacionalização do ABA para indivíduos autistas:

A Intervenção Comportamental baseada em ABA oferece à pessoa diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista uma melhora na comunicação, refinamento das relações sociais, ampliação de repertório global e desenvolvimento de autonomia. Favorece também a redução de comportamentos não adaptativos, tais como estereotipias, agressividade, ecolalias, entre outros, ou mesmo substituição por outros comportamentos socialmente aceitáveis que desempenhem a mesma função, mas com mais eficiência. Possibilita ao paciente equiparar-se aos seus pares, dando-lhe qualidade de vida, direito de igualdade, respeitando princípios constitucionais, tais como: dignidade da pessoa humana, direito à saúde, direito à vida, tão caro à sociedade. ABPMC, 2019. Fonte: CIRCULAR ABPMC – COMUNICAÇÃO À COMUNIDADE BRASILEIRA A RESPEITO DA INTERVENÇÃO BASEADA EM ABA E PROFISSIONAIS QUE ATENDEM NEURODIVERSOS.

Neste ponto, sobre o que está descrito no rol da ANS e a indicação médica para o tratamento que entender viável para a melhoria no prognóstico do paciente com TEA, foi consultado o médico neuropediatra Gustavo Nogueira Holanda, que entende ser inviável para os médicos definirem o tratamento baseado se eles estão ou não no rol da ANS:

É inaceitável ter que indicar somente os tratamentos listados no rol da ANS, atendo-se apenas àqueles que são custeados pelos planos de saúde. Devemos lembrar que autonomia, beneficência, não maleficência e justiça são princípios bioéticos soberanos a saúde vem em primeiro lugar. Nem os planos e nem a ANS podem interferir nas prescrições médicas, pois isto contraria pontos importantes do Código de Ética Médica. O médico especialista é o único que poderá determinar qual o tratamento deve ser oferecido ao paciente, nem mesmo a equipe de terapeutas poderá modificar o tratamento, sem a anuência do médico, pois os médicos se responsabilizam pelas suas prescrições! Logo, se eventos e ações de terceiros vierem a modificar ou limitar este tratamento, a responsabilidade pelos resultados passará a ser de quem foi contra a ordem médica.
Chega a ser impensável a mudança do tratamento médico segundo uma conveniência da equipe terapêutica, é como se eu prescrevesse que o paciente fizesse quimioterapia, mas chegando na clínica a equipe responsável e, muitas vezes, cheia de conflitos de interesse com os convênios, entende que o tratamento correto é a radioterapia e passa a oferecer este tratamento, contrariando a prescrição médica.
Portanto, no tratamento multidisciplinar para o autismo, é recomendável seguir rigorosamente o que está contido no laudo médico e prescrição do médico, sob pena de submeter o paciente a tratamento ineficaz a sua saúde, além de perder a janela de oportunidade da estimulação precoce e da plasticidade cerebral, no caso de crianças autistas.
Gustavo Nogueira Holanda (CRM 21.131-PE) em 15/03/2022.

Já no aspecto social e do ativismo na causa autista, ouvimos a opinião de Fátima de Kwant, Erradicada na Holanda, Jornalista, Escritora e Ativista Internacional da Causa Autista, que se manifestou da seguinte forma sobre a discussão do rol da ANS:

Na discussão sobre o Rol da ANS noto duas coisas:
1. Que toda a Comunidade do autismo quer a mesma coisa: o Rol exemplificativo.
2. Que existe uma polarização surgida de especulações acerca do Rol já ser taxativo.
Há duas décadas o Rol da ANS é exemplificativo e a luta para mantê-lo assim deve continuar, além da luta pela ampliação do Rol com as terapias para autistas, baseadas em evidências científicas, como a ABA. 
Dessa forma os planos de saúde não mais poderão apelar para a não citação da ABA no Rol exemplificativo, como sempre aconteceu.   
Até hoje muitos dos pedidos para terapia custeada pelo plano de saúde é negada. Os seguros preferem pagar advogados e perder liminares na esperança de que as famílias já desistam antes de tentarem! As famílias precisam conhecer seus direitos e não se intimidarem. Continuarem a denunciar o plano de saúde e conseguir o direito dos autistas obterem o tratamento que precisam. 
Muito importante saber que o Rol da ANS não é taxativo até segundo julgamento. Temos que nos atender a fatos e ficarmos de olhos abertos, sem perder nenhuma oportunidade de luta, mas sem populismo e especulação que não levam a nada mais que dividir uma comunidade polarizada. 
Fátima de Kwant em 16/03/2022.

Ainda escutando especialistas, segundo a Advogada Mirella Lacerda, advogada especializada em direito médico e da saúde, direito dos autistas e uma das fundadoras da LigaTEA – Advogados que Defendem Autistas, entende que:

O julgamento do RESP 1886929, que vem ocorrendo no STJ, poderá definir se o rol da ANS será considerado taxativo ou exemplificativo. Apesar de todas as problemáticas ao redor do tema, nenhuma decisão impedirá que procedimentos outros, que não estejam no rol, sejam completamente afastados do acesso da população. Tudo ainda poderá ser discutido caso a caso e a depender das evidências científicas do procedimento. Claro que nossa preferência é pela exemplificidade do rol, entretanto, se a taxatividade vier, estaremos prontos para combatê-la.
Mirella Lacerda (OAB/PE 28.410), 14 março 2022.

Assim, constatamos que a Lei 14.307/2022 não mudou o cenário regulatório, que já era claro pelo seu entendimento da taxatividade do rol da ANS, muito menos deu poderes a mesma para tornar as suas resoluções normativas como absolutas, irrevogáveis e imutáveis. O Advogado Robson Menezes, vice-presidente da comissão especial de defesa dos direitos dos autistas do Conselho Federal da OAB e um dos fundadores da LigaTEA – Advogados que Defendem Autistas, também entende desta forma:

A lei 13407/2022, inicialmente assustou muito a comunidade autista, pois, aparentava que concederia mais poderes à ANS para decidir sobre a taxatividade do rol de procedimentos médicos/clínicos, contudo, após uma análise mais profunda, percebeu-se que, na verdade, esse ponto não mudou, mudou sim a forma, os prazos e os procedimentos a serem utilizados para se alterar o ROL da ANS. 
A depender da forma que a lei vai ser regulamentada pela própria ANS (risco da Lei), este pode ser o caminho para que práticas baseadas em evidência para tratamento de autistas constem no ROL da ANS.
Robson Menezes (OAB/PE 24.155), 14 março 2022.

Cabe salientar que 16 tribunais de justiça do Brasil entendem que o rol é exemplificativo, ou seja, a norma da ANS que determina que o rol é taxativo, é revogada pelo judiciário em 16 estados, tornando-a sem efeito:

O levantamento foi baseado em buscas no sistema processual de todos os Estados do país, além de consultas em assessorias. Das respostas, foi possível aferir que as Cortes de 16 estados se posicionam pelo Rol Exemplificativo. São elas: TJDFT (Distrito Federal); TJGO (Goiás); TJMS (Mato Grosso do Sul); TJSP (São Paulo); TJES (Espírito Santo); TJRJ (Rio de Janeiro); TJAM (Amazonas); TJAC (Acre); TJTO (Tocantins); TJAP (Amapá); TJMA (Maranhão); TJCE (Ceará); TJPE (Pernambuco); TJRN (Rio Grande do Norte); TJPB (Paraíba) e TJBA (Bahia). Destes, ao menos dois deles, o TJSP e o TJRJ possuem súmulas que firmam esse entendimento, orientando os magistrados em suas decisões (veja o artigo de Karla Gamba, Jota Saúde, em 02.fev.2022: “Maioria dos TJs considera Rol da ANS como Exemplificativo“).

Este também é o posicionamento da Associação Brasileira de Magistrados (AMB), que em 21/10/2021 enviou ofício ao STJ se manifestando pela necessidade do tribunal superior entender pela exemplificidade do rol da ANS, pois:

É imprescindível a proteção assistencial de 48 milhões de pacientes/usuários do sistema de saúde suplementar por meio da garantia de cumprimento dos contratos de planos de saúde. Operadoras não podem dizer não à cobertura quando seus beneficiários mais precisam – ou seja, quando necessitam se submeter a um tratamento ou procedimento indicado pelo médico. As entidades signatárias desse manifesto alertam para o risco de grave retrocesso na rede de saúde suplementar, caso o STJ (Superior Tribunal de Justiça) altere o entendimento histórico sobre a natureza exemplificativa do rol de procedimentos de cobertura obrigatória da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) — (veja o “Manifesto de alerta aos brasileiros“, AMB, de 21.out.2021).

Por isto, a decisão que será tomada pelo STJ é tão importante, pois servirá de base para o entendimento dos tribunais estaduais e, obviamente afetará àqueles que pleiteiam o tratamento na justiça e, mesmo, àqueles que pedem administrativamente aos planos e são negados. Lembrando que, se os planos de saúde não cobrirem os procedimentos determinados em laudo médico só restará duas alternativas: custeio direto e o SUS, alternativas que, na maioria das vezes, inviabilizam o tratamento em saúde, e por isto que esta decisão impacta diretamente a todos os brasileiros.

Logo, não se trata de um entendimento isolado ou defender um ponto de vista, mas sim analisar com cautela todo o regramento jurídico para entender as reais implicações deste julgamento, sem que cause pânico nas pessoas neste momento, uma vez que a Lei 14.307/2022 ainda não alterou em nada o cenário que existe há 20 anos.

Contudo é de se notar que a medida provisória, que deu origem à Lei em análise, foi editada dias antes do julgamento no STJ que definirá acerca da taxatividade ou não do rol da ANS e por isto toda a sociedade civil deve ficar atenta e vigilante a estes movimentos legislativos, pois é de conhecimento geral que os planos de saúde fazem grande pressão no Congresso Nacional, em virtude do seu enorme poderio econômico, e isto pôde ser constatado pela forma e data em que a Lei 14.307/2022 foi criada, uma vez que a MP foi criada antes do voto do ministro Salomão, e que foi expressamente citada pelo mesmo, e a promulgação da Lei veio após o voto da ministra Nancy, mostrando que os planos de saúde estão atuando nos bastidores e que tais mudanças na legislação são formas sutis, através de artifícios sofisticados, para TENTAR emplacar o Rol Taxativo da ANS, o que não iremos aceitar. 

Cabe lembrar que o entendimento sobre o rol da ANS ser taxativo ou não ainda é individualizado de cada Juiz, Desembargador ou Tribunal de Justiça, enquanto não for julgado o recurso no STJ, que está previsto para o mês de abril ou maio de 2022. Ou seja, se decisões ou liminares forem negadas com o argumento de que o rol da ANS é taxativo, será necessário consultar um advogado especialista na área, para que seja determinada a melhor estratégia jurídica para reverter decisões deste tipo, pois somente o judiciário poderá resolver esta questão em direito da saúde.

Ao meu entender, este é o momento para que haja a mobilização social nacional, independentemente de posicionamento político-partidário-ideológico, independentemente de ego individual ou coletivo e respeitando o pensamento e a história de cada um que está na luta pelo ROL EXEMPLIFICATIVO, pois se o rol for considerado taxativo, toda a sociedade brasileira perderá, principalmente aqueles que pagam um plano de saúde durante a vida e na hora que precisarem de tratamento, não conseguirão, e sequer saberão como perderam os seus direitos à saúde.

 

CONTEÚDO EXTRA

 

REFERÊNCIAS

1 — CHIGANER, L.; RIBEIRO, A. M.; DE MELLO, J. C. S.; BIONDI NETO, L. A reforma do setor elétrico brasileiro: aspectos institucionais. Procedings of the 4th Encontro de Energia no Meio Rural, 2002. Disponível em: http://www.proceedings.scielo.br/pdf/agrener/n4v1/007.pdf. 17. mar. 2022.

2 — FAÇANHA, Façanha da Silva; MAGALHAES, Jackeline Carla Belo; KRUSE, Rodrigo Moraes. Dificuldades enfrentadas pelos advogados na defesa dos direitos dos beneficiários frente ao fenômeno da captura na Agência Nacional de Saúde Suplementar. Revista OAB Olinda, Olinda, v. 1, Comemorativa, p. 163-178. ISSN 8504-6057.

3 — 10. Steinbrenner JR, Hume K, Odom SL, et al. Evidence-based practices for children, youth, and young adults with autism (2020). The University of North Carolina at Chapel Hill, Frank Porter Graham Child Development Institute, National Clearinghouse on Autism Evidence and Practice Review Team.

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Advogado, educador, professor e ativista. Mestrando em Direito, LLM em direito corporativo, pós graduação em direito do consumidor, civil e processo. Fundador da LigaTEA – Advogados que Defendem Autistas. Licenciatura em letras-português, consultor educacional, pós graduação em docência e metodologia da pesquisa científica, pós graduação em informática educativa, pós graduação em neuroeducação e pós-graduando em análise comportamental aplicada ao autismo. Pai do Benjamin (autista 9 anos).

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