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A primeira vez que me deparei com esse questionamento foi quando escrevi o livro Camaleônicos – a vida de adultos autistas. O livro é uma espécie de reportagem com 10 autistas que falam sobre sua vida pessoal e profissional, conforme estes trechos:
Capítulo: O autismo leve não é leve em sofrimento: “Em sua vivência profissional, Maria sempre foi muito honesta e quando, em um de seus trabalhos, seria preciso mentir para demitir alguns funcionários, ela não conseguiu, pois que eles tinham famílias para sustentar. Preferiu pedir demissão. Maria não faz nenhum acompanhamento terapêutico, embora apresente grande dificuldade mesmo para dirigir, fazer manobras e até já ‘arrancou alguns retrovisores de carros por aí…’.” (pág.36) assim como Clarice que se obrigou a dar conta do que os outros davam. (…) Foi assim que ela tirou carteira de motorista, na sétima tentativa, mesmo que isso a tivesse levado a uma exaustão que só ela e o namorado, à época, tivessem tido a dimensão. Essa carteira de motorista, ao invés da conquista de liberdade e autonomia, tornou-se um pesadelo que a infernizou por vários anos. Ela detestava ir a lugares que não conhecia, não conseguia dirigir bem à noite (todos apostavam na miopia como causa) e já saía estressada pensando na volta.
Era cobrada pelos amigos e família que diziam a ela que o medo era bobo e irreal já que ela dirigia muito bem. Clarice, com voz sumida, afirmou que claro que dirigia bem, pois isso era um ato mecânico, era treino. Mas ninguém acreditava na falta de noção de tempo e espaço para uma ultrapassagem por exemplo. ‘Coisa de toda mulher’, foi o que ela ouviu a vida toda. (…) Ela tinha prejuízo em algumas percepções, mas não deixou de dirigir por isso. Como já era de costume, redobrava sua atenção e seu esforço.” Trechos retirados pela editora.
Capítulo Enquanto houver desconhecimento, haverá sofrimento: “Gostaria de dançar, por exemplo, mas isso exige um esforço muito grande. Estou esperando uma ocasião em que eu consiga concentrar energia para aprender, com instrução e tudo, pois só assim acho que consigo enfrentar as coisas. Tive muita dificuldade para aprender a dirigir. Ainda assim, Henrique consegue aprender e enfrentar as circunstâncias, uma coisa de cada vez. ‘E a vida adulta tem me trazido muitas coisas novas, sempre, ao mesmo tempo.’ (Pág 92)
Capítulo A Inclusão é o espaço das diferenças: “Os testes neuropsicológicos explicaram muita coisa como (…) a dificuldade em fazer coisas aparentemente simples como dirigir, cozinhar ou fazer compras; a dificuldade com a atenção seletiva que quase me deixa extremamente estressada e confusa frente a lugares com muitos estímulos e barulhos.” (Pág 169)
Observadas todas essas experiências, inclusive a minha (Clarice é meu pseudônimo neste livro), eu não tenho dúvidas de que o autista (se quiser) deve se submeter aos exames para tirar a habilitação como motorista – de forma inclusiva e, se aprovado, pode e deve dirigir. Na realidade, os autistas têm completa noção de suas limitações, o que os torna mais atentos e prudentes.
Tanto que no dia 30 de abril, eu dirigia para o sítio de minha mãe e paramos num supermercado às margens da MG10 – Estrada Real. Fizemos compras e, ao sair, conferi e, ao longe, vinha um caminhão. Me dei conta de que não havia recolocado o cinto de segurança. Ao colocá-lo, voltei a olhar e o caminhão já estava mais próximo, mas não o suficiente para me impedir de entrar na BR. Foi o que eu fiz. Já havia percorrido alguns quilômetros quando percebi que o motorista do caminhão estava correndo para me alcançar. Acelerei e não pensei mais no caso.
Acontece que, quando a pista perdeu o acostamento numa área ladeada por encostas e sem duplificação para a pista da outra mão, eu observei o caminhão crescendo no meu retrovisor interno. Não acreditei. Comecei a orar o meu mantra bem alto e joguei o meu carro, o máximo que consegui, rente à encosta. Segurei firme o volante e torci para que o espaço deixado entre meu carro e a fileira de carros na contramão desse para o motorista irresponsável. Irresponsável não, criminoso, passar sem problemas.
Voltei à minha mão de direção e todos à volta estavam aterrorizados. Disse à minha mãe que a manobra do infeliz havia sido proposital e ela sugeriu que ele devia estar com algum problema que justificasse a atitude insana. Embora minha mãe e minha filha estivessem apavoradas, eu fechei a questão: “foi de propósito. Esse cara não podia dirigir.” Mais à frente, numa área de ultrapassagem permitida, tive de ultrapassar o mesmo caminhão para não ficar presa atrás dele. Segui mais eis que 20 minutos depois, ele surge, crescendo, novamente, em meu retrovisor. Só que desta vez, eu estava perto da entrada do condomínio e já havia comércio à beira de estrada. Saí da pista e resolvi dar uma boa margem de frente ao pseudo profissional do volante.
Não acreditei quando vi a manobra para conversão à esquerda: ele estava indo para o mesmo condomínio que eu. Fui atrás. Ele parou na portaria reservada aos caminhoneiros que fazem entregas e eu, parei na portaria dos condôminos. Saí do carro e minha mãe pediu que eu não fosse. Mas eu PRECISAVA saber por que aquele homem fizera aquilo, por que ele colocou a vida da minha família em risco, jogando aquele caminhão enorme no meu ‘March’. Ingenuidade autística, pois ele ironizou: Quem? Eu? A senhora está enganada. Foi a gota d’água: estava clara a má fé. Falei com ele que se não fosse a perícia da motorista amadora, o profissional tinha causado um grave acidente. Tive um colapso.
O síndico, que estava na portaria, interveio ponderando que trânsito é assim mesmo. E eu, muito nervosa: “Claro que não é. Trânsito é lugar de regras, de direção respeitosa e saudável.” Fui para casa e pedi à uma fonte da Polícia Civil que checasse a placa do motorista pois ele fazia carreto para o condomínio. Resultado: Um processo pela Lei Maria da Pena e dois por danos materiais em rodovias, fugindo e deixando o prejuízo para a vítima.
Querem mesmo me convencer de que autista é que pode representar risco ao trânsito? Não, sempre haverá seres humanos do bem e do mal. Autistas ou não autistas.