1 de setembro de 2020

Tempo de Leitura: 5 minutos

A visão de uma mãe sobre a luta antirracista e anticapacitista no Brasil

Talvez você não me conheça, mas sou mãe de um menino autista negro e sou negra e autista. Gosto de me apresentar dessa maneira por que é importante contextualizar minhas análises neste texto. Elas são baseadas em muitos autores mas, principalmente, são baseadas em minhas experiências, sendo mulher e mãe de uma criança preta e autista no Brasil. São inquietações com as quais uma mãe preta atípica pode se identificar e compartilhar. Peço que “calce meus sapatos” e me acompanhe nessas inquietações. 

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Para falar de racismo e capacitismo desde a ótica de uma pessoa neurodiversa precisamos entender o contexto histórico, social e econômico que as pessoas com deficiência enfrentam em nosso país.

Quando fiquei grávida do meu filho Luiz, minha cabeça virou um misto de alegria e preocupação, e eu não estava preocupada com condição financeira porque eu sabia que isso era o menor dos problemas. Como meu hiperfoco é racismo, eu sempre soube que ter um filho preto sendo mãe preta no Brasil não era uma tarefa fácil.

Eu, mãe preta em um país determinantemente racista, fiz mil planos sobre como eu iria ensinar meu filho a se portar diante de “um enquadro”, nas situações racistas da escola e, sobretudo, em como criar nele uma auto estima inabalável. Nunca ninguém poderia lhe dizer que ele não era importante. 

Percebemos o autismo em nossas vidas quando Luiz tinha 1 ano e 5 meses. Notei que seu desenvolvimento estava diferente de outras crianças na sua idade, entretanto, o que eu mais ouvia quando o Luiz não respondia às interações sociais referia-se a ele ser “mal educado”. 

Obviamente, após ouvir que meu filho era “mal educado”, eu já sabia que não era esse o caso. Afinal, que tipo de educação familiar “faltou” pra uma criança de 1 ano e 5 meses? Onde eu e o pai do Luiz erramos na construção da educação do nosso filho? E quantos de nós (negros) ouvimos, ao longo da nossa vida, que somos agressivos e mal educados? Há um racismo que não é falado, há um esteriótipo de marginalização e agressividade dos nossos corpos que não é contado. Eu sempre soube, mas não sabia que o Luiz se depararia com essa estrutura, mesmo tendo tão pouca idade. 

Ao levar o Luiz ao médico tive a certeza de que ele era autista. Passamos por um período de 6 meses indo a médicos para que o Luiz fosse diagnosticado e, entre uma consulta e outra, eu escutei que o meu filho era “mal estimulado” e “preguiçoso”. Com apenas 1 ano e 9 meses, tive que brigar pra que a vida e a saúde de um menino negro, meu filho, fossem respeitadas. 

Talvez você não tenha percebido, mas há um olhar que marginaliza as pessoas pretas dentro da saúde. Como diz o texto abaixo, de 2007, extraído da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (p.30), do Ministério da Saúde:

“Do ponto de vista institucional – que envolve as políticas, os programas e as relações interpessoais –, deve-se considerar que as instituições comprometem sua atuação quando deixam de oferecer um serviço qualificado às pessoas em função da sua origem étnico racial, cor da pele ou cultura. Esse comprometimento é resultante do racismo institucional”.

Ao perceber que meu filho era autista, meu medo não era “não ter um filho aceito na sociedade”, porque, afinal, somos pretos e periféricos, e a sociedade não nos aceita. Nós aprendemos a resistir em meio à estrutura racista que nos cerca. Meu maior medo em relação ao meu filho deixou de ser preocupação e passou a ser a urgência, sendo o Luiz um menino preto e autista não oralizado.

Há uma vivência que não é contada sobre as famílias periféricas: a abordagem policial, uma realidade comum, mas autoritária dentro das favelas. Um questionamento urgente surgiu em minha cabeça:  ao “autistar” pelo meu bairro, a polícia não confundiria meu filho com um suspeito? Será que os policiais iriam ouvi-lo? Será que daria tempo de ele sinalizar que não fala? Sabemos como a polícia nos aborda e como somos tratados. A resposta é não. O Luiz e outros garotos negros, neurodiversos ou não, nem sequer têm direito de fala ou de explicação.

Esses dados se confirmam por pesquisas que afirmam que, no nosso país, a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado. Por esse motivo, criei uma metodologia de proteção da vida do meu filho. Apesar de ele ter 3 anos apenas, eu já ensino os comandos policiais a ele, pois o mais importante é que ele entenda os comandos e os respeite, caso seja alvo de abordagem policial. E, mais importante ainda, que volte vivo para casa.

Meu autodiagnóstico

Vinicius Caetano e Luciana Viegas Caetano, com os filhos Luiz Caetano (3 anos) e Elisa Caetano (2 anos).

Eu sou autista, mas sou autodiagnosticada. Me percebi autista aos 26 anos através de estudos sobre como o autismo se desenvolve, comparando minhas experiências de vida ao que era dito por especialistas em autismo. Infelizmente não tenho laudo. Após anos sendo diagnosticada erroneamente ainda não encontrei um profissional que se dispusesse a olhar pra mim e para  minha condição sem me marginalizar ou mesmo sem um viés racista.

Percebendo essa disparidade entre acesso ao diagnóstico e realidades, eu me posicionei para falar da luta das pessoas pretas com deficiências e de como somos silenciadas e atravessadas pelo racismo estrutural, também entre os nossos. Surgiu o movimento #vidasnegrascomdeficienciaimportam ⧿ um movimento de pessoas negras com deficiência que pautam suas experiências e chamam a atenção da comunidade médica para a realidade das pessoas com deficiência negras no Brasil, tomando proporções e alcance incríveis..

No mundo da neurodiversidade o autodiagnóstico é comum. Eu e mais autistas, sobretudo negros, aceitamos o próprio autodiagnóstico e seguimos respeitando nossas particularidades e procurando maneiras de viver com um pouco mais de qualidade de vida. Falar em auto diagnóstico de autismo em pessoas pretas, é apontar o quão restritivas e racistas são as políticas e modelos de diagnóstico no nosso país.

 O modelo médico de deficiência é um modelo que enfoca os déficits e limita pessoas com deficiência apenas à sua deficiência, estereótipos, checklists e CIDs. Isso resulta em pessoas negras, neurodiversas, que têm um acúmulo de CIDs sem nenhuma possibilidade de tratamento de qualidade, tanto pelo sistema único de saúde (SUS) quanto pela rede particular.

É comum escutar entre nós, autistas pretos, que saímos do consultório com o laudo em uma mão e a receita para medicações na outra ⧿ sem ao menos garantia de tratamento e um diagnóstico mais detalhado voltado a melhorar nossa qualidade de vida. E aqui não estou colocando em questão autistas que estão internados em fundações, casas e até mesmo em manicômios, vivendo marginalizados e sem um diagnóstico sobre sua neurodiversidade. Esse debate é de muitas perguntas, poucas respostas, seja pela falta de representatividade dentro dos movimentos, seja pela maneira que autistas pretos, por serem auto diagnosticados, não se sentem seguros para expor sua deficiência sem serem questionados, e por isso não falam sobre suas vivências.

Escrevo aqui a você, meu amigo autista, auto diagnosticado, e à mãe preta que me lê, seguimos juntos nessa luta, nesse processo de construção da nossa autonomia, qualidade de vida e orgulho de ser quem somos, não tenhamos medo de ser potência, não tenhamos medo de nos mobilizar. Estaremos juntos na luta. 

Precisamos repensar  a maneira como abordamos e como enxergamos as pessoas negras autistas, precisamos acolher, escutar e, mais que isso, mobilizar pessoas e apoiar a luta. Dar voz às pessoas neurodiversas pretas é necessário e urgente.

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É autista, mãe do Luiz (autista) e da Elisa, professora da Rede Estadual de São Paulo. Ativista pela neurodiversidade e membro da ABRAÇA. Atua nas redes falando sobre a relação entre a luta antirracista e anticapacitista.

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