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Não aguento mais, por isso, aqui estão as confissões de uma autista. No início, construí minha primeira proteção ao perceber que era muito diferente de minha irmã. Eu era apenas um ano mais velha que ela. No entanto, ela parecia um bebê ainda que tivéssemos 9 e 10 anos, à época. Minha mãe a tratava como tal e, perguntava orgulhosa: quem vem tomar a ‘beladinha’ na caminha da mamãe? Eu considerava ridículo e não escondia minha contrariedade. O que, claro, foi prontamente interpretado como ciúme pelo simplismo dos adultos.
As camadas protetoras de uma autista
A segunda camada veio com o ensino infantil. A hora da merenda parecia um piquenique, com crianças sentadas ao chão e seus lanchinhos colocados à sua frente, em uma grande toalha xadreza de vermelho e branco. As risadas começaram porque todas levavam suas garrafinhas plásticas, que traziam em suas merendeiras. A minha era uma garrafinha do guaraná Antarctica, de vidro esverdeado. E o conteúdo, no lugar do Toddy levado pelos coleguinhas, era café com leite. Que eu achava um luxo, confesso.
Eu não ligava mesmo, até descobrir que isso me tornava diferente. Aliás, o motivo para dos risinhos inocentes e sem filtro social. Mas minha percepção das pessoas à minha volta começara aos 2 anos e meio e se transformou em hiperfoco que trago comigo, até hoje. Então, fui sufocando tudo que em mim que era diferente dos colegas. O barulho da sirene que me doía no ouvido, mas que não era sequer percebido por alguns aluninhos. O cheiro de comida vindo da cantina, que começava às nove horas, para a merenda dos mais velhos, às 11.
Mascaramento ou masking social nas confissões de uma autista
Assim, a cada ano mais e mais capas de proteção foram criadas. Porém, ao chegar o momento em que eu queria fazer o mestrado, percebi que já não suportaria a fórmula da aprendizagem. Eu já tinha meu emprego, e o mestrado poderia ser a gota d’água para uma exaustão extremamente pesada. Aliás, tal exaustão me rendeu enxaquecas indescritíveis, diagnósticos recorrentes de depressão. Como se depressão pudesse ocorrer em quem se levantava às 5h00 e dormia à meia noite. Mas eu tinha paixão pelo estudo e era produtiva no meu trabalho. A forma engessada de executar e conciliar tudo isso era o que estava acabando comigo.
Já havia deixado para trás a carreira como técnica em edificações pelo mesmo motivo. Decidi por abandonar o sonho pelo mestrado e focar na carreira de Comunicadora Social. Então, trabalhei como Relações Públicas e também como jornalista. Fiz especialização em Comunicação e Gestão Empresarial, dez anos depois de desistir do mestrado. Já tinha minha filha e não poderia retomar meu desejo.
Confissões de uma autista: o amor também pode exigir várias camadas de proteção
Minha vida amorosa tivera início aos 13 anos, quando resolvi ter namorado, pois não conseguia manter as amizades. A troca não foi exatamente como eu pensava. Mas ainda era alternativa melhor que fazer e manter as amizades. No entanto, ainda me sentia duas. A Sueli que ficava em casa e a Selma que saía para atividades em sociedade. Esse foi o fator determinante para complicar minhas relações amorosas. Eu conhecia o pretendente como Selma. Entretanto, quando ele ia à minha casa como namorado, e era impossível que ele não percebesse meu lado Sueli.
Essa realidade trouxe novas e mais camadas de proteção, tecidas agora, com tramas mais complexas. No entanto, há muito tempo me fundi em quem sou, Selma Sueli Silva. O que me levou à descoberta de meu diagnóstico como autista. Contudo, desenvolvi, além do que hoje entendo como masking, ou mascaramento social, o transtorno de despersonalização. Esse transtorno é caracterizado por uma sensação persistente ou recorrente de desligamento do próprio corpo ou dos próprios processos mentais, como se eu fosse uma observadora externa da minha vida, e/ou por uma sensação de desligamento do ambiente em que me encontro (eventos, festas, reuniões sociais, educacionais etc).
Cansei, sou uma autista que precisa de paz
Mas, confesso, sinto-me exaurida. Distanciada de ser quem sou, onde quer que seja. Estou farta de cobranças, protocolos ilógicos em grande parte, engessamentos sociais. Tudo isso, me distancia de mim e das pessoas que amo, com as quais desejo estar. Não me sinto competente para consolidar uma amizade, sem me sentir invasiva ou mero puxa-saco. É uma sensação horrível que não vem de quem sou e sim, do que a maioria convencionou chamar de ‘normal”. O que a sociedade me cobra ser também.
Por isso, entenda essas confissões de uma autista, como um pedido de paz. Estou cansada do esforço unilateral. Sei que tenho falhas, sou humana. Mas minha humanidade também é responsável por meu jeito de ser, com o brilho que, certamente, existe em mim. Quando encontro alguém, amigo ou pretendente, suas diferenças e singularidades também se revelam aos meus olhos. E isso é apenas mais um fator que me leva ao desejo de descobrir sobre as diferenças humanas.
Para ser inteira nas confissões de uma autista eu confesso, agora Não me recolho por escolha. Eu me recolho para me proteger. Portanto, peço a sua parceria para me desprender de tantas camadas de proteção, construídas ao longo de minha jornada. Eu não sou um personagem. Em minha essência sou um ser humano que pode surpreender e agradar. Ou não, e está tudo bem. Existe o aprendizado aí também. Sim, minhas palavras são um convite. Você se arrisca na rica experiência dessa descoberta comigo?