11 de janeiro de 2025

Tempo de Leitura: 7 minutos

Planejar ambientes para pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um desafio que vai além da funcionalidade. A arquiteta Alessandra Gandolfi, especialista em neuroarquitetura, explica que cada projeto exige um olhar individualizado, seja em residências, clínicas ou espaços corporativos. Segundo ela, o maior desafio no âmbito residencial está na aceitação e na falta de percepção da família sobre o impacto do espaço físico na saúde mental. Já nos projetos corporativos, a dificuldade reside em equilibrar as diferentes necessidades de estimulação sensorial de cada indivíduo no espectro.

A neuroarquitetura, campo que une ciência e design, é essencial para criar ambientes adequados. “Os autistas são únicos, e cada espaço deve ser pensado com base em suas necessidades sensoriais e preferências pessoais”, destaca Alessandra. Desde a escolha de cores que acalmam até texturas e iluminação que promovem conforto, cada detalhe é crucial. Ela ressalta ainda a importância da biofilia (conectar o ser humano a natureza), da organização espacial e da acústica para tornar os ambientes mais acolhedores.

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Com base em sua experiência, Alessandra compartilha dicas práticas para adaptar espaços em casa, como criar um “cantinho zen” para regulação emocional, um mural de rotinas que traz previsibilidade e até áreas dedicadas ao hiperfoco, respeitando os interesses únicos de cada criança. Mais do que funcionalidade e estética, Alessandra reforça que esses projetos devem considerar o impacto emocional do ambiente, promovendo pertencimento e qualidade de vida.

Confira a entrevista com a arquiteta Alessandra Gandolfi.

Quais os principais desafios que você identifica ao planejar  ambientes voltados para pessoas com autismo?

Os desafios variam de acordo com o tipo de projeto, mas acredito que o residencial é o mais desafiador.

Nos projetos residenciais, o maior desafio é a aceitação. Normalmente, quando a família recebe esse diagnóstico, costuma se desesperar e busca por soluções externas. Então, a criança é colocada em várias terapias para melhorar a qualidade de vida, mas a família acaba esquecendo que grande parte do tempo será passado dentro de casa – e que o espaço físico pode ajudar ou piorar a saúde mental de todos os moradores. Outro desafio é quando a família começa a implementar soluções por conta própria porque, em muitos casos, a criança se incomoda por diversos fatores e não consegue se comunicar, ou a família não sabe compreender essas necessidades. Ou seja, é improdutivo e pode ser ser prejudicial.

Em projetos corporativos e/ou de clínicas, o maior desafio é a diferença  entre as necessidades de cada autista, uma vez que são diversos níveis de suporte dentro do espectro, que é muito grande. Alguns demandam  hiperestimulação (estímulos) e outros hipoestimulação (área calma), então, é desafiador medir em quais sentidos devemos focar nesses espaços porque eles devem ser acolhedores e funcionais para todos.

Para superar esses desafios, a solução é multidisciplinar, integrando neurociência, psicologia, arquitetura, design e família.

Como a neuroarquitetura contribui para criar espaços mais adequados às necessidades sensoriais dos autistas?

Os autistas são únicos e diferentes, por isso, é importante identificar as  questões chave que são importantes para cada criança. Para tanto, é fundamental contar com um profissional especializado em neuroarquitetura, que fará uma entrevista aprofundada para criar um espaço físico que valorize as necessidades e preferências de cada indivíduo e que invista naquilo que realmente proporciona qualidade de vida e bem-estar para ele.

O estudo da neuroarquitetura nos faz compreender os impactos do ambiente físico no comportamento humano, dessa forma, fica muito mais acertado propor a solução ideal para cada caso. A partir dessas análises, escolhemos os artifícios que vão melhorar a relação da pessoa com o ambiente em que ela está inserida, seja por meio do layout, das cores, da iluminação, da acústica, e etc.

O sistema nervoso central é encarregado de processar, organizar e codificar as informações recebidas no ambiente. Ao projetar um espaço, evocamos sensações nos indivíduos, que são processadas pelo cérebro, gerando uma resposta emocional. No caso do TEA, isso é ainda mais importante, considerando que pessoas autistas têm hipersensibilidade ou hipossensibilidade a estímulos sensoriais.

Por exemplo, o quarto que apresentei na CASACOR Paraná em 2024, pensado para um adolescente autista, era muito sensorial. Esse adolescente gosta do toque, de sentir a textura, ele queria sentir a sensação de estar encostado nela. Em termos gerais, a maioria dos autistas costuma não  gostar de toques e texturas. Isso demonstra como cada caso é individual  e o quão importante é ter um profissional capacitado que saiba como dosar o que deve ou não ser estimulado de acordo com cada necessidade.

Na sua experiência, quais são os elementos indispensáveis em um ambiente planejado para autistas? Há algum cuidado específico com cores, texturas ou iluminação?

Cada detalhe do ambiente é importante, mas o projeto vai variar de acordo com as necessidades e preferências de cada autista, justamente por conta da singularidade de cada um. Aqui também entra o trabalho multidisciplinar de compreender o que é clinicamente indicado ou não  para aquela pessoa.

Cores: depende do estímulo. Por exemplo, se for um quarto apenas para descanso, tons de azul e verde são recomendados, pois acalmam. Agora, se o quarto também tiver uma área de estudo, que demanda mais concentração, eles já não seriam tão indicados porque poderiam induzir ao sono. Depende da necessidade.

Texturas: podem ser utilizadas ou não, depende se a pessoa gosta e quais são os toques que ela gosta de sentir. De fato, é muito individual.

Iluminação: indico a iluminação natural durante o dia e, para a noite, iluminação artificial mais indireta (ela não pode incidir diretamente no rosto, pois gera incômodo). Em relação as tonalidades, normalmente utilizamos 2700k, a maioria costuma preferir os tons mais amarelados  e não gostam dos tons brancos, mas como já reiterei, vai depender de cada caso.

Outros pontos importantes são: acústica, organização espacial, regulação sensorial, biofilia e personalização.

  1. Acústica: um ponto que é quase uma unanimidade entre os autistas é que eles não gostam de barulho, cada pessoa do espectro terá um nível  de sensibilidade aos ruídos, mas a maioria acabam se incomodando de alguma forma. Por isso, é importante investir em materiais que reduzam os ruídos de alguma forma. Pode ser uma janela com vidro duplo, revestimentos com mais tecidos e acabamentos têxteis no geral  (tapetes, cortinas, etc). Temos também os revestimentos acústicos mesmo, feitos de diversas matérias-primas, que são fabricados  especificamente para reduzir a transmissão de sons indesejados para o  ambiente e proporcionar mais conforto acústico.
  2. Organização espacial: um layout com espaços bem setorizados também é importante, justamente porque os autistas costumam gostar de organização, previsibilidade e planejamento.
  3. Regulação sensorial: é importante criar espaços específicos para estímulo ou não estímulo, como já citado acima, vai depender de cada caso.
  4. Biofilia: a conexão com a tranquilidade transmitida pela natureza pode  ser muito benéfica, como a inserção de plantas no ambiente, de amplas  janelas com vista para o jardim e etc.
  5. Personalização: é essencial que o projeto seja personalizado para aquela pessoa, pois criando algo específico para ele(a), terá o sentimento de pertencimento. Caso contrário, não se envolverá emocionalmente com aquele espaço e isso prejudicará seu bem-estar, desenvolvimento e qualidade de vida.

Você pode compartilhar dicas práticas e acessíveis para pais ou cuidadores que desejam adaptar espaços em casa para maior conforto e funcionalidade?

Ter um espaço em casa que seja mais adequado para terapias.  Normalmente, a criança faz as terapias fora de casa, mas algumas vezes também faz em casa (para os pais é mais porque podem acompanhar a evolução da criança). A maior parte das famílias não tem um espaço dedicado às terapias dentro de casa, então, é possível adaptar o quarto da criança. Se a criança é menor, você vai colocar um  tapetinho, pufes e almofadas, que auxiliam na regulação sensorial. Por  exemplo, eu lembro que meu cliente fazia fono em casa e a mãe queria que tivesse um espelho para a criança observar a própria boca para ir vendo os estímulos vocais. Algumas crianças têm dificuldade de locomoção e precisam de uma barra de apoio no quarto. Tudo vai depender da idade  que a criança está e do que que ela precisa naquele momento, mas são  soluções simples fazem grande diferença no dia a dia. Certamente que, se for possível, criar um espaço especialmente projetado para as terapias é o ideal.

Evitar áreas de muito estímulo, como lavanderia, cozinha. Por exemplo, às vezes a criança fica com a babá, empregada ou outros familiares, e aí eles pedem para que a criança vá até esses cômodos acompanhá-los, pois eles precisam realizar atividades como lavar roupas, louças e etc. O barulho da máquina de lavar ou das louças sendo  lavadas podem incomodar as crianças e piorar tudo, como elas não sabem identificar ou comunicar, é bom evitar a permanência nesses espaços que têm muitos estímulos.

Criar um mural de rotinas é extremamente bem-vindo. Ele pode ser  de madeira, velcro, os escolares com giz, ou até mesmo escrito à mão, o importante é que a criança tenha essa previsibilidade do que irá acontecer na sua rotina e que possa interagir com esse material. As lousas são ótimas porque é possível ir escrevendo, apagando e montando. Eu faço muito isso aqui em casa. Essa é uma solução simples, você pode pintar a parede de giz ou mandar fazer, existe até papel de parede de lousa.

Criar um “cantinho zen” para regulação: puff, nicho com estofado, almofadas, tapetes, para que cada criança tenha o seu cantinho, para que quando ela se estresse, tenha um refúgio onde vai se sentir bem, à vontade, e poderá ficar só com ela  mesma. Pode ser um “pufão”, um pufe com várias almofadas, nichos estofados que são tipo um casulo, ou até mesmo um cantinho que possa ser “fechado” com uma cortina e tenha um tapete ou uma almofada.

Ter um espaço que estimule o hiperfoco da criança, exemplo: área de música, carros. Normalmente, a pessoa autista tem um hiperfoco, alguma coisa que ela gosta bastante. Esse espaço, sim, tem que ser estimulado. No caso aqui da minha casa, é a música, um espaço que possui vários instrumentos e ele sabe que será mais barulhento, mas é um estímulo para ele. Têm pessoas que gostam de carros e no seu espaço de hiperfoco podem ter vários livros temáticos, coleções de miniaturas e etc; outras que gostam de se gravar dançando, então o seu espaço de hiperfoco pode ter um espelho e os equipamentos para gravação.

Como equilibrar as necessidades sensoriais e funcionais dos autistas com a estetica e a flexibilidade dos ambientes?

Contratando um bom profissional. Ele precisa ser completo, entender sobre o assunto, compreender as especificidades e propor os materiais e soluções adequados para cada caso. A experiência na área é fundamental porque somente assim é possível abraçar as necessidades que, por vezes, a própria pessoa não é capaz de identificar. Alguém que   tenha a habilidade de antecipar os problemas e saiba aliar técnica e criatividade para criar boas soluções. Além da atenção a esses detalhes, que também tenha estilo, bom gosto e que saiba fazer um trabalho que  seja uma extensão do projeto da casa.

Enfim, além da estética e da funcionalidade, devemos considerar o impacto emocional e cognitivo do ambiente sobre as pessoas que o vivenciam. Isso é percepção. Quanto mais entendemos de pessoas, mais entendemos de projeto, e isso, somente um profissional especializado é capaz de proporcionar.

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Idealizadora do programa "Eu Digo X" e mãe do Jorge, um jovem diagnosticado com autismo e síndrome do X-Frágil.

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