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Lembra, quando criança, você percebeu que eu não lidava bem com certas brincadeiras e ainda assim brincou? Pois é. Você me feriu. Hoje tais brincadeiras se chamam bullying. Mas você ainda acredita que elas não machucam ninguém. Ah, se você soubesse…
Na infância, você não queria, mas… você me feriu.
Ainda na infância, quando eu me queimei com a gordura quente e duas grandes bolhas logo apareceram? Eu sei que você não queria me machucar. Mas você me feriu. E ficou tranquilo quando eu não chorei e disse para todos que não doía. Você disse que a culpa era minha, ainda que eu fosse criança. Hoje, sei que não doeu por causa da hipossensibilidade. Exclusão – Você não queria, mas… você me feriu.
Na adolescência…
Já na pré-adolescência, quando eu emiti minha opinião sobre o jogo de futebol, você me fez sair da sala. Embora não quisesse me ferir, você me feriu. Disse que criança não pode “dar pitacos”. Mas doeu muito mais, quando eu comecei a tossir e a espirrar sangue. Eu estava com coqueluche. Você pediu que eu tossisse no terreiro. Que a casa não era minha. Aqui também, você me feriu. Hoje, justifica que criança só atrapalha.
Na escola, você não queria, mas… você me feriu.
Na escola, quando fazia minhas perguntas, você me pedia para calar. Explicava que eu estava “passando o carro à frente dos bois.” Abri a boca para perguntar o que isso queria dizer, mas, fechei imediatamente. Seu olhar me recriminava. Afinal, eu falava demais, perguntava demais. Eu sei que você não queria, mas isso me feriu.
Depois disso, à medida que os anos passavam, percebi que não havia resposta certa para o professor(a). Existia a resposta certa do professor. De novo, todas as tentativas de argumentar foram cerceadas. Eu sei, eu sei. Você nunca quis me ferir. Mas você me feriu.
Na faculdade…
Já na faculdade, apostei que seria diferente. Estava enganada. Você se repetia, seguia no automático. Entretanto, você se justificava e dizia que, na faculdade, o aluno só quer enrolar. Por isso, você descartou o sentimento de que havia me ferido. Mas você me feriu.
Todas as vezes que tentei explicar que a realidade de cada aluno era diferente, você zombou de mim. E você me feriu. Aliás, você sempre tinha uma explicação genérica. “Não podemos analisar caso a caso. Universitário quer vida mansa. Não que você quisesse me ferir. Mas você me feriu.
Você, em algumas aulas práticas, surtava e dizia que no mercado de trabalho, seria assim e pronto. Ainda me lembro da sua expressão de incredulidade, quando eu o alertei que no mercado de trabalho, você poderia se deparar comigo como sua chefe. Certamente, eu agiria diferente. Seu olhar de comiseração não desejou me ferir. Mas, adivinhe? Você me feriu.
No mercado de trabalho…
E, como profissional, todas as vezes que percebia seu olhar de vigília, da cobrança antes do prazo, da falta de respeito ao se dirigir à equipe, e o pior, do receio de eu não conseguir, você me feriu. Sequer se arrependia, ao receber o trabalho no prazo, com a excelência necessária. Desse modo, eu podia jurar que, como tantas outras vezes, você chamaria para si, a eficiência do resultado. Novamente desconsiderava a equipe. Também nunca percebeu, isso mesmo, NUNCA, de que o controle de qualidade do meu trabalho é MEU. Logo, sua cobrança era completamente inócua. De novo, você não queria. Mas você me feriu.
No relacionamento humano, você não queria, mas… você me feriu.
E quando a esperança de encontrar com um companheiro instigante, que me fizesse melhor a cada dia e vice-versa, se desfez, você me feriu. E eu que pensava que o amor é proativo, agregador, autêntico, uma construção diária e verdadeira, pleno de gratidão, me estrepei. Você me feriu. Não que o amor não seja tudo isso. A apropriação humana dele é que pode ser insuficiente. E, esta forma torta de amar, me feriu. E sim, eu sei, você não queria.
Amigos? Sim, sempre desejei tê-los. Mas, à moda de Vinícius, como sabê-los? Manter é tão complicado! Na sua forma de se afastar, sem ao menos me explicar o motivo, você me feriu. Isso é exclusão – Você não queria, mas… você me feriu.
O que me salvou, então? O que me salvou, e salva, é que hoje me conheço mais. E, ao me conhecer, percebo nossas diferenças. E, ao perceber as diferenças, constato: você não é todo mundo. Existem pessoas diferentes. Mais ricas em sua humanidade, mais interessadas em sua coletividade. Sim, foi isso que me salvou. Hoje você não me fere mais.