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Antes de tratarmos propriamente do tema genética da apraxia da fala é muito importante entendemos exatamente o significado de cada termo, pois fala e comunicação são conceitos distintos, mas que se complementam.
Fala corresponde aos sons de uma determinada língua produzidos pelos nossos órgãos fonoarticulatórios. Já a comunicação é algo muito mais amplo, pois representa a capacidade de dois ou mais interlocutores trocarem informações utilizando o mesmo sistema simbólico. Portanto, de duas pessoas estão conversando elas estão se comunicando e para isso se utilizam do sistema simbólico da fala. Mas, se uma pessoa envia uma carta para outra, elas também estão se comunicando, mas utilizando outro sistema simbólico: a escrita. Outro exemplo, se um grupo de pessoas surdas interagem entre si elas estão se comunicando e para tanto estão utilizando a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) como sistema simbólico comum. Então, ficou claro que a fala é somente uma pequena parte de todo nosso arsenal de comunicação!
A fala, provavelmente, é a função cognitiva mais complexa que o cérebro humano pode apresentar. E, é exatamente por isso, que pequenas alterações estruturais ou funcionais do nosso cérebro podem gerar um grande comprometimento da fala.
Falar é um comportamento que, para ser funcional, deve fazer parte de um processo de intenção comunicativa. A última fase da produção da fala é um fenômeno motor. Quer dizer, no final das contas o cérebro precisa planejar e controlar os movimentos dos órgãos fonoarticulatórios para que a fala seja produzida corretamente.
A apraxia da fala é um distúrbio motor, de origem neurológica, decorrente da dificuldade ou mesmo da incapacidade do cérebro em planejar e programar a exata sequência de todos os movimentos necessários para a produção correta da fala. Em uma situação fisiológica, o cérebro precisa coordenar os articuladores da fala, incluindo os lábios, o palato, a língua, os músculos respiratórios, a mandíbula entre outras estruturas. Na apraxia da fala, o cérebro não exerce esse controle da forma adequada o que leva a um distúrbio na produção da fala.
Mas, por que exatamente é importante conhecermos tão bem a apraxia da fala se nosso assunto geralmente é o transtorno do espectro autista? Porque muitas crianças autistas apresentam de forma comórbida a apraxia da fala e as intervenções para as duas condições (autismo e apraxia) são totalmente diferentes.
Bom, mas aí surge outra pergunta. Se o autismo e a apraxia da fala são condições neurológicas distintas, por que muitas crianças apresentam ambos os transtornos?
E a resposta a essa pergunta começou a ser elucidada nos últimos anos através de estudos genéticos. Assim como uma pessoa pode apresentar de forma comórbida mais de um transtorno neuropsiquiátrico (exemplo: autismo e transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, autismo e transtorno opositor desafiante, depressão e transtorno de conduta), uma pessoa pode apresentar a associação simultânea de uma condição neuropsiquiátrica e um transtorno da fala, já que estas condições dividem mecanismos genéticos comuns.
Um recente artigo publicado na revista Neurology (uma das mais importantes do mundo na área de neurociências) denominado “Severe childhood speech disorder: Gene discovery highlights transcriptional dysregulation” aborda exatamente esse tema: a genética da apraxia da fala.
Nesse estudo, foram avaliadas 34 crianças com diagnóstico clínico de apraxia da fala, com idade média de 8 anos (variando de 2 anos e 9 meses a 16 anos e 10 meses), sendo 16 meninos. Nesse grupo de crianças havia um par de gêmeos monozigóticos. A avaliação genética foi realizada por análise cromossômica por microarray e sequenciamento do exoma/genoma. Das 34 crianças avaliadas, 33 além da apraxia da fala, também apresentaram atraso significativo para iniciar a fala na primeira infância. Na análise cromossômica por microarray uma das crianças apresentou uma deleção de novo, em mosaico, de aproximadamente 9,2 megabases, no braço longo do cromossomo 5 em 75% das células analisadas. No sequenciamento do exoma/genoma foram identificadas variantes candidatas para apraxia da fala em 21 das 34 crianças (62%).
Este estudo torna mais clara a compreensão de que a apraxia da fala, assim como diversas condições neuropsiquiátricas, pode dividir mecanismos genéticos comuns com o autismo ou outros transtornos do neurodesenvolvimento.
Conhecer os mecanismos genéticos envolvidos na origem da apraxia da fala nos auxiliaria na determinação antecipada do prognóstico e, num futuro próximo, quem sabe, seriamos capazes de oferecer intervenções cada vez mais específicas para cada grupo genético de apraxia.
Vídeo
Assista, a seguir, ao vídeo de Paulo Liberalesso sobre a genética da Apraxia da Fala, no canal TEA Cerena no Youtube.
Referência:
Michael S. Hildebrand, Victoria E. Jackson, Thomas S. Scerri, et al. Severe childhood speech disorder: gene discovery highlights transcriptional dysregulation. Neurology 19, 2020; 94 (20).