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“Os pais devem ter consciência e saber que o excesso de zelo nunca conduzirá o autista para uma educação que dê bons resultados, e o mesmo ocorre com o descaso.”*
(Nilton Salvador)
Nilton Salvador é um dos grandes espíritos que, de vez em quando, são enviados por Deus para organizar um pouco a vida de nós, seres humanos comuns, e desavisados das grandes verdades da vida.
Mês passado Deus o chamou de volta: o trabalho estava cumprido, ele havia colocado no caminho certo milhares de pais e mães de autistas dando-lhes esperanças, exemplos, conselhos… dando-lhes fé!
A dor que hoje sinto pela perda física desse amigo, que me tirou o chão e me moeu o coração, não é nada comparada à alegria que devem ter tido Deus e todos os amigos espirituais pelo retorno dele à verdadeira Pátria!
Devo dizer quem foi Nilton Salvador para aqueles que não tiveram a oportunidade de conhecê-lo, pessoas que são recém-chegadas à causa autista. Para esses posso dizer que Nilton foi, antes de tudo, o pai de Eros, Anna e Gabriel; também o esposo devotado de Roseli Antônia. Nascido em Santa Catarina, foi morar e amar Curitiba como poucos. Tornou-se escritor para dividir com outros pais a sua trajetória com o filho autista, Eros. E esse seu protagonismo foi um presente para nós, outros pais de autistas brasileiros, perdidos na década de 1990, com filhos que constavam numa incidência de 1 a cada 10 mil nascidos, sem publicações nacionais que nos mostrassem que não estávamos sós. Em 1993, Nilton lançou seu primeiro livro, e maior sucesso, que se chamou Vida de Autista.
Na época da movimentação pelo Projeto de Lei do Senado nº 168, de 2011, que posteriormente resultou na Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, com os autores Berenice Piana e Ulisses Batista à frente, um dos grandes alicerces foi Nilton Salvador, que se empenhou de todas as formas para que o Brasil pudesse, sim, ter a sua lei de defesa dos direitos dos autistas, o que graças a Deus se tornou realidade em 2012, o marco da história do autismo no Brasil: a Lei Berenice Piana (12764/12).
Meu primeiro contato com Nilton aconteceu em 1997, mas nossa amizade se solidificou a partir de 1998 com a aquisição de um computador que facilitou o acesso à comunicação através da troca de muitos e-mails. Logo depois entramos para a Lista de Autismo Brasil (a primeira do país), um grupo de poucos pais e profissionais desbravadores na época da internet discada, quando um e-mail podia demorar horas para entrar. O papel de Nilton nesse grupo era do “paizão” que acolhia, tinha sabedoria, trazia ótimas informações e mostrava também muito bom humor. Cada um que chegava, recebia um conforto, um afago e, às vezes, também, um puxão de orelhas!
Enquanto nossos meninos cresciam, íamos percebendo a urgência de encontrar caminhos para eles e para todos os autistas brasileiros. A falta de diagnóstico precoce, tratamentos, escolas, residências assistidas sempre foi a grande preocupação. E Nilton, também aí pioneiro, entrou para o ativismo levando todos nós pela mão: eu, Liê Ribeiro, Berenice Piana e Ulisses Batista, entre tantos outros que foram chegando e aumentando essa corrente de amor e apoio incondicional aos autistas.
Em 2007, Nilton Salvador foi agraciado com o Prêmio Orgulho Autista Brasil oferecido pela instituição MOAB na categoria “Autor e Livro Destaque”, por Vida de Autista. Nilton se tornou coordenador desse movimento, representando o Paraná até 2017. Igualmente participou de inúmeras audiências em favor dos autistas, tanto na Câmara Federal quanto no Senado Federal, onde seus discursos eram sempre repletos de emoção, de firmeza e coerência, mostrando aos nossos políticos as reais urgências dentro da causa.
Uma de suas contribuições mais importantes aconteceu no ano de 2015, durante o seminário Autismo e os Desafios da Educação Inclusiva, no Senado Federal. Promovido pelo senador Romário, com apoio da embaixada do Reino Unido, o evento reuniu especialistas e pais que debateram os desafios do autismo. Nilton tinha sofrido um acidente nessa época, machucado uma das pernas, e mesmo de muletas cumpriu essa agenda de maneira brilhante. Uma das boas lembranças pessoais com ele, após esse evento, é a da gargalhada do Nilton, já no aeroporto de Brasília, com a aeromoça que o ajudou a se sentar na cadeira de rodas, depois de quase havermos perdido nossos voos devido a um grande atraso na programação do evento. Apesar do sufoco, do desconforto físico, demora do evento, trânsito e correria para chegar a tempo de pegarmos o avião de volta, só lembro do meu amigo rindo, e feliz.
Luta pela Regulamentação da Lei Berenice Piana
Depois de sancionada a Lei Nacional, a luta se tornou em prol da regulamentação, o que ocasionou alguns dissabores que se estendem até hoje, como a inclusão dos CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) para atendimento das pessoas com autismo. O que para Nilton Salvador foi um grande golpe que ele jamais aceitou, e o incitou a escrever textos sobre o tema, e a falar sobre isso sempre que tinha oportunidade. Em seu brilhante discurso, em audiência na Comissão de Direitos Humanos (CDH), do Dia Mundial de Conscientização do Autismo de 2014, evidenciou críticas ao decreto de regulamentação da Lei 12.764/2012, chamando a atenção das autoridades e associações para o fato de que CAPS não eram locais adequados para atendimento de pessoas com autismo, não por serem os autistas melhores ou piores que os outros usuários, mas por terem especificidades que precisam ser contempladas.
Nilton também teve uma participação expressiva no que diz respeito à busca e alcance de políticas públicas para seu estado, o Paraná, e sempre articulou com todos aqueles que, assim como ele, defendiam o bom combate. Foi assim em 2013, quando o governo do estado do Paraná sancionou a lei de autoria do deputado Péricles de Mello, que instituiu diretrizes para uma política estadual de proteção dos direitos da pessoa com autismo, a lei 17.555/2013. Nessa ocasião, Nilton contou com o apoio de Berenice Piana e a Associação Aampara, da qual era membro atuante. Outra colaboração valorosa foi quando participou como expositor da audiência O Autismo e a Legislação no Paraná, em 2017, no Plenarinho da Assembleia Legislativa. Isso ilustra, apenas, algumas das tantas participações em eventos importantes de seu amado Paraná.
Em 2017, Ronaldo Cruz (outro amigo que já se foi, pai/ativista e que merece todas as honras) junto com Bruna Priscila, Berenice Piana, Fatima de Kwant, Ulisses Batista, Liê Ribeiro, eu e Nilton Salvador lançamos a REUNIDA – Rede Nacional e Internacional pelos Direitos dos Autistas. Nilton fez e fará para sempre parte do Conselho de Honra, eternizado como um dos grandes nomes da história do autismo no Brasil. História essa pautada em ética, moral e amor por todos os autistas. A REUNIDA sempre reverenciará os nomes de seus idealizadores que já partiram: Ronaldo Cruz e Nilton Salvador!
Nilton, o pai e escritor
Paralelo às ações por políticas públicas, o desenvolvimento do filho Eros e toda a gama de obrigações que isso envolvia, além do trabalho profissional que gerar seu ganha-pão, Nilton Salvador continuava a saga de escritor, publicando além de Vida de Autista, os célebres títulos: Autismo – Deslizando nas Ondas, Deficiência ou Eficiência; Vivências Autísticas; Vivo e Imortal – Ensinando a Aprender; Adoção – O Parto do Coração; Autistas, os Pequenos Nadas e Eles Cresceram. Seus livros, segundo ele sempre falava, eram “diários de esperança”; narrativas de experiências concretas e bem sucedidas que o autismo impunha.Tive a honra de participar de alguns desses livros, com textos, frases ou histórias que eu contava e ele transcrevia, sempre privilegiando as histórias e textos das mães, dando espaço para a publicação de relatos riquíssimos.
Ainda hoje, tive a oportunidade de abrir o blog Vivências Autísticas, onde ele escrevia desde 2008. No canto da página um trecho de texto meu, e dentro do blog muitas notícias sobre mim, minha trajetória de mãe ativista, eventos, prêmios, textos. Essa generosidade sempre foi constante nesses mais de 20 anos de amizade. Nilton promovia as pessoas, sempre!
Nilton sempre palestrava gratuitamente nos eventos de autismo, e em 2011 tive a oportunidade de trazê-lo para palestrar na II Semana de Conscientização de Autismo na minha cidade. Mesmo adoentado ele fez questão de vir, acompanhado da filha Anna Carolina, e abrilhantou o evento de uma maneira tão singela que comoveu os espectadores. Dois anos mais tarde pude lhe retribuir a gentileza, lançando dentro da associação local a Biblioteca Nilton Salvador, com exemplares doados por pessoas de várias partes do país, a fim de levar informações aos pais de autistas que não tinham acesso a publicações. Creio que essa homenagem tenha sido para ele motivo de grande alegria, pois os livros eram uma de suas paixões.
Último projeto e saudades eternas
Nosso último projeto juntos não teve tempo de se concretizar antes da passagem dele, mas está em andamento e nas mãos de Deus. Em algum momento irá acontecer, tenho fé!
Eu poderia ficar, aqui, escrevendo sobre tantas coisas que ocorreram na vida de Nilton e nos mais de 20 anos de convívio com ele. Contar sobre tantos outros feitos e glórias, mas o que mais vai me fazer falta será o amigo que dava os melhores conselhos, contava os melhores “causos”, ria de mim por qualquer motivo, me mandava fotos de todas as comidas imagináveis quando eu estava de dieta. O amigo que atendia meus pedidos de oração, me socorria nas provações, sorria e festejava com os progressos dos meus filhos. Aquele a quem eu confiava alguns segredos, muitos medos e algumas promessas.
Vou sentir falta das ligações para dizer das histórias engraçadas de Eros e saber das de Gabriel, meu filho. Vou sentir falta das mensagens direcionadas à Amadinha Mineira… e eu nem sou mineira, mas ele me elegeu. Vou sentir falta do porto seguro onde eu podia dividir. ancorar minhas dores sem reprimendas.
Às vezes o chamava de Bruxo, pois dizia coisas que sabia sem a gente saber como, ou dizia coisas que aconteceriam e de fato se davam. Vou sentir falta dos apelidos engraçados que ele dava para todos: para os amigos cheios de carinho e para os “inimigos” (que ele dizia que não tinha); eram cheios de amor, mas com uma pitadinha leve de acidez. Vou sentir falta até das broncas que dava por não ter conseguido falar comigo quando precisava, dos recados que ele me fazia entregar para as pessoas que por acaso se chateavam com ele, dando sempre o primeiro passo para a reconciliação.
Essa semana de comoção, e de tantas homenagens nas redes sociais, me deparei com relatos de pessoas que durante os anos aprenderam a admirá-lo e relatos, também, de pessoas mais jovens, principalmente pais de autistas que mesmo com pouco tempo de convivência puderam usufruir de sua amizade. Me deparei com a lacuna que ficará dentro da causa autista, mas imagino, principalmente, a falta que fará para a família esse pai e esposo sem igual.
Meu pedido a Deus é que ele seja recebido com paz e luz (seu bordão enquanto viveu), possa estar entre os amigos mais queridos do lado de lá, como Hermínio** e Ronaldo, e possa, de vez em quando, olhar por nós, aqui na Terra, e nos enviar suas energias boas e azuis!
Referências
- * Citação inicial do livro: Autistas, os Pequenos Nadas. Ed. Wak, Rio de Janeiro, 2018.
- * Hermínio de Miranda, grande escritor espírita. Autor do livro: Autismo, uma Leitura Espiritual (que tem participação de Nilton).