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A síndrome de Rett, descrita pela primeira vez em 1966 pelo pediatra austríaco Andreas Rett, é uma condição neurológica grave que afeta principalmente meninas. Por muitos anos, sua causa permaneceu um mistério para a comunidade científica. Uma família brasileira desempenhou um papel crucial na descoberta do gene responsável por essa síndrome, uma história que demonstra a importância da colaboração entre famílias, associações, médicos e pesquisadores internacionais.
O início da jornada
No início da década de 90, na cidade paranaense de Jaguariaíva, o Dr. José Luiz Pinto Pereira, um neuropediatra interessado no estudo da síndrome de Rett, fez uma descoberta extraordinária. Ele identificou um caso único: três irmãs afetadas pela síndrome. Simone Bolfer, mãe de uma menina com síndrome de Rett e ativa na comunidade, relembra o momento. “O Dr. José Luiz sempre foi muito interessado pela síndrome de Rett, e em um determinado dia me ligou pedindo para que eu visitasse o hospital, pois havia internado uma menina de seis anos, da APAE de Jaguariaiva-PR, com síndrome de Rett. Essa menina tinha uma irmã, também com deficiência. Ele foi vê-la e a diagnosticou também com a síndrome de Rett”, disse.
A família teve oito filhos no total, cinco deles com síndrome de Rett ‒ um caso extremamente raro e valioso para a pesquisa genética.”Esse casal teve oito filhos: uma menina que faleceu com 2 anos e 6 meses, com a síndrome de Rett, um menino que morreu antes de completar um ano, uma filha que morreu com 13 anos, uma menina, à época com 10 anos, também com a síndrome de Rett, uma menina de 6 anos com a síndrome de Rett, uma filha neurotípica que, à época, estava com 19 anos, uma outra filha, à época com 17 anos, também neurotípica e uma menina neurotípica, que à época estava com 2 anos e oito meses”, contou.
A descoberta chega ao cenário internacional
O Dr. Pereira, reconhecendo a importância desse caso, apresentou-o em um congresso internacional. Simone relata: ”O Dr. José Luiz apresentou o caso das três meninas Rett do Brasil em um congresso internacional no qual estava presente a Dra. Sakkubai Naidu, do Hospital John Hopkins de Baltimore, EUA”. Essa doutora, uma neurogeneticista renomada, do Kennedy Institute em Baltimore, EUA, imediatamente reconheceu o potencial do caso para avançar a pesquisa sobre a síndrome de Rett.
A viagem que mudou tudo
Com o apoio da Associação Brasileira de Síndrome de Rett (Abre-te), a família viajou para Baltimore, em 1997, acompanhada pelo Dr. Pereira. Simone descreve a mobilização: “Foi então que entrou a participação da Abre-te. Como era muito importante a pesquisa, a Abre-te juntou recursos e pagou a minha passagem. Fomos então: a mãe, a filha mais velha, com 19 anos, a menina de 2,8 anos (ambas sem a síndrome), as duas meninas com a síndrome (a mais velha das três tinha falecido), o Dr. José Luiz e eu”, relembrou Simone Bolfer.
Foram, então, coletadas amostras de DNA de todos os membros da família, incluindo as crianças com a síndrome no cromossomo X.
A descoberta do gene
Os dados genéticos da família brasileira foram compartilhados com outros centros de pesquisa, incluindo a Universidade de Stanford, que estava avançada no estudo da mutação. Essa colaboração internacional culminou na identificação do gene MECP2 como a causa da síndrome de Rett, uma descoberta publicada em 1999 por pesquisadores liderados pela Dra. Huda Zoghbi.
“Foi um momento emocionante! Era uma noite de domingo. Na época, ainda usávamos secretária eletrônica para gravar os recados telefônicos. Chegando em casa, percebi que havia um recado e, ao ouvi-lo, perdi o fôlego, minhas pernas amoleceram! Era Mrs. Kathy Hunter, à época presidente da International Rett Syndrome Association, dizendo: ‘Isis, foi identificado o gene causador da síndrome de Rett!’ Eu mal acreditei! Imediatamente liguei para o Dr. José Salomão Schwartzman e, também através da secretária eletrônica, deixei o mesmo recado que acabara de receber. Parecia que eu estava sonhando. Nascia, nesse momento, a esperança da cura”, relata Isis Riechelmann, presidente da Abre-te, à época.
A contribuição desta família brasileira foi determinante por várias razões:
- O grande número de indivíduos afetados em uma única família permitiu uma análise genética mais precisa.
- A presença de irmãs afetadas e não afetadas forneceu informações valiosas sobre o padrão de herança.
- A colaboração entre as comunidades científicas brasileira e internacional acelerou o processo de descoberta.
Impacto e Legado
Esta história destaca a importância da colaboração entre famílias, associações, médicos e pesquisadores, na busca por respostas para condições genéticas complexas. A contribuição brasileira para a descoberta da causa genética da síndrome de Rett não apenas ajudou a compreender melhor a condição, mas também abriu caminho para futuras pesquisas e possíveis tratamentos. A partir da identificação da mutação do gene MECP2 foi possível mostrar que os sintomas da síndrome de Rett poderiam ser revertidos em modelos murinos (estudo do Dr. Adrian Bird, publicado em 2007) e comprovar que a síndrome de Rett não é degenerativa. Esses mesmos estudos levaram ao desenvolvimento da terapia gênica para síndrome de Rett, que está atualmente em teste clínico nos EUA, Canadá e Reino Unido.
Simone reflete sobre o impacto dessa descoberta: “Foi uma longa e gratificante história e temos que agradecer […] ao Dr. José Luiz Pinto Pereira, que divulgou o caso para a comunidade médica internacional, pois, se não fosse ele, nunca o mundo saberia dessa família tão determinante para a ciência”.
Hoje, graças a essa família brasileira, sabemos que a síndrome de Rett é causada por mutações no gene MECP2, localizado no cromossomo X. Essa descoberta tem implicações significativas para o diagnóstico, aconselhamento genético e desenvolvimento de terapias potenciais para essa condição devastadora.
Conclusão
A história serve como um poderoso lembrete do impacto que indivíduos e famílias podem ter na pesquisa médica, e da importância da colaboração internacional na busca por respostas para desafios médicos complexos. Como Simone conclui em seu depoimento: “Nós temos que agradecer a esta família. Agradecer aos cientistas que continuam buscando a cura da síndrome de Rett que, se Deus quiser, será próxima”.
A contribuição brasileira não apenas ajudou a desvendar um mistério médico, mas também trouxe esperança para famílias em todo o mundo, afetadas pela síndrome de Rett.