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Para muitos, a tela escura do cinema se acende como um portal para a adrenalina. Dessa forma, torna-se um mergulho consentido no macabro e no desconhecido que pulsa em filmes de terror. Mas para pessoas autistas, essa experiência pode transcender o mero entretenimento. Afinal, ela pode ser amplificada por um fenômeno neurológico peculiar e intenso: o hiperfoco. Longe de ser um simples gosto passageiro, essa imersão profunda no universo do horror pode se tornar um refúgio sensorial e intelectual singular.
A lupa do hiperfoco: desvendando camadas ocultas
O hiperfoco é essa capacidade de concentrar-se intensamente em um tópico específico. No meu caso, ele transforma a experiência de assistir a um filme de terror em algo visceralmente mais profundo para muitas pessoas autistas. Assim, detalhes que escapam ao olhar desatento ganham uma nitidez surpreendente. Isso porque eu analiso a complexa teia da trilha sonora, a engenhosidade dos efeitos visuais, a sutil linguagem corporal dos atores e até os mais discretos objetos de cena. Essa atenção extraordinária aos detalhes não apenas enriquece a apreciação da cinematografia e da narrativa. Ela também permite desvendar camadas de significado que permanecem ocultas para uma visualização superficial.
Pense em Corra! (2019), um filme que transcende o horror para lançar uma crítica afiada à eugenia e ao racismo. A produção nos força a confrontar como esse antigo problema social persiste de maneiras sutis, porém profundamente danosas, em nossa sociedade contemporânea. A representação do preconceito racial infiltrando-se por meio de mecanismos de controle mental é um retrato impactante de um mal presente em nosso século. Ou considere A Substância (2024), que utiliza o grotesco do horror corporal, historicamente ligado à objetificação feminina, para expor o desprezo que também reside nesse corpo. Com isso, mostra a raiva e a luta interna fomentadas externamente de uma forma impossível de ignorar.
Controle na escuridão: navegando pelo medo com imersão
Além da análise minuciosa, o hiperfoco pode paradoxalmente proporcionar uma sensação de controle dentro de um gênero que, para muitos, é sinônimo de medo e ansiedade. Ao concentrarem-se intensamente nos intrincados elementos do filme, autistas podem experimentar uma maior sensação de domínio sobre a experiência. Dessa forma, divertem-se antecipando reviravoltas na trama e compreendendo a lógica interna daquele universo ficcional. Essa imersão controlada pode ter um efeito terapêutico, oferecendo um espaço seguro para a exploração de temas sombrios e intensos.
Acompanhante Perfeita (2024) ilustra bem esse ponto, tecendo discussões sobre relacionamentos abusivos e os complexos dilemas éticos que envolvem a inteligência artificial. Tudo isso em um ritmo frenético e cheio de reviravoltas. É um daqueles filmes em que a ignorância prévia da trama intensifica a experiência. De forma similar, Imaculada subverte as expectativas iniciais de maneira poderosa e inteligente, revelando como o bem pode gerar o mal e como discursos aparentemente benéficos podem ocultar intenções contraditórias e prejudiciais. Decifrar essas nuances e desvendar os mistérios apresentados de forma lúdica pode ser um exercício intelectualmente estimulante e prazeroso para mentes hiperfocadas.
O conforto paradoxal da previsibilidade no terror
Curiosamente, a previsibilidade inerente a certos tropos do terror pode ser outro fator de grande atração para pessoas autistas. Embora o objetivo primordial do gênero seja surpreender e assustar, muitos filmes seguem convenções narrativas e estruturas familiares. A capacidade de identificar esses padrões pode gerar uma sensação de conforto e segurança, um contraste bem-vindo com a imprevisibilidade do mundo real. A clássica estrutura de “construção da tensão – clímax – resolução” pode ser particularmente reconfortante para indivíduos que valorizam a ordem e a previsibilidade.
Pessoalmente, sou uma grande fã dos filmes slashers, com seus icônicos assassinos mascarados perseguindo grupos de adolescentes. A franquia Pânico (iniciada em 1996) é um exemplo notável desse subgênero, explorando a mesma fórmula de maneiras surpreendentemente criativas ao longo de seus filmes, mas sempre mantendo a espinha dorsal da estrutura. Lembro-me de assistir a Pânico VI (2023) no cinema e me pegar recitando mentalmente um mantra budista pela sobrevivência da repórter Gale Weathers, uma personagem presente desde o primeiro filme. Nos filmes da série Pânico, as piadas metalinguísticas sobre o universo do terror nerd, com inúmeras referências a artistas, filmes e produções do gênero slasher, são um deleite. O mais interessante é que essas citações nunca são meros adornos ou alívios cômicos; elas se integram ao desenvolvimento da história e dos personagens.
A diversidade do espectro: nem todo horror cativa
É fundamental, contudo, reconhecer a vasta diversidade dentro do espectro autista. Nem todas as pessoas autistas sentirão atração por filmes de terror, e mesmo entre aquelas que se interessam, haverá uma ampla gama de tolerância e preferências dentro do gênero. Alguns podem ser fascinados pelo terror psicológico, enquanto outros preferem o gore explícito ou os clássicos filmes de monstros. A intensidade do hiperfoco também varia significativamente entre indivíduos. Além disso, a hiperempatia e a sensibilidade sensorial de algumas pessoas autistas podem tornar a experiência de assistir a filmes de terror algo profundamente perturbador e insuportável.
Desmistificando o sombrio: uma paixão como qualquer outra
É crucial desmistificar a noção de que o interesse de pessoas autistas por filmes de terror seja algo sombrio ou incomum. Assim como qualquer outra pessoa, indivíduos no espectro podem encontrar nesse gênero uma forma de entretenimento, uma via para a exploração de emoções intensas e até mesmo um ponto de conexão social, unindo-se a outros fãs que compartilham a mesma paixão.
Em suma, o hiperfoco pode transformar a experiência de assistir a filmes de terror para pessoas autistas em algo excepcionalmente rico e profundo. A atenção meticulosa aos detalhes, a sensação de controle proporcionada pela imersão e a previsibilidade reconfortante de certos tropos narrativos podem oferecer um fascínio que transcende o mero entretenimento. Ao abraçarmos essa perspectiva, podemos verdadeiramente apreciar a diversidade de experiências e interesses dentro do espectro autista, reconhecendo que o apreço pelo sombrio pode ser uma paixão tão válida e enriquecedora quanto qualquer outra.