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Este prefácio foi escrito a dois para dar conta de tratar sobre o núcleo de cada um que faz o que nos é comum: a experiência humana. Somos irmãos e, como exercício, não pretendemos dizer qual de nós dois é autista (se é que é apenas um). Inicialmente, entendemos que não convém. E a razão é a seguinte: enquanto instalamos nossas singularidades neste texto, quero manter brechas para que aquilo que pode nos ser comum fique à vontade. Portanto, esta abertura toma como tema o bullying como uma das dimensões disponíveis para a experiência humana.
Individualmente, há vezes que algumas das discriminações que vivenciamos ou tomamos conhecimento não fazem qualquer sentido. Soa estranho, até mesmo irracional, que pessoas possam conduzir suas vidas sustentando condutas, valores e preconceitos frontalmente opostos a outras formas de vida que não se assemelham às suas. Inclusive, pode causar espanto que comportamentos tão antagônicos às diversidades humanas sigam ocorrendo em diferentes escalas.
Contudo, essa percepção apenas mantém sentido quando utilizada de maneira individual, desconsiderando algumas determinantes históricas incontornáveis, persistentes e que possuem aspectos funcionais para a nossa sociedade. E, com isso, queremos nos referir ao capacitismo. Em poucas palavras, o capacitismo é uma inteligência, uma forma de pensar que se manifesta sem ser totalmente da consciência de quem a pratica. Essa razão, que chamamos de capacitismo, consiste em diferenciar, desvalorizar e maltratar as pessoas de acordo com a avaliação que é feita da sua capacidade corporal e/ou cognitiva. Ao pensar capacitista, importa o que o corpo (supostamente) pode ou não fazer.
Percebam que essa perspectiva, esteja ela consciente ou inconsciente, valoriza a vida de acordo com aquilo que, hipoteticamente, ela está apta a fazer e produzir. Esse preconceito, mesmo que para algumas possa aparentar injustificável, está sendo operado diariamente em nossa sociedade como um valor indispensável ao funcionamento “normal” da sociedade. Afinal, seja para o mundo do trabalho, dentro das salas de aula e dos consultórios, o interessante é que os corpos funcionem normalmente, sem desvios, disciplinados, como estabelece a norma.
O capacitismo, apesar de ser um conceito relativamente novo, que passa a ser utilizado no Brasil a partir de 2010, se apresenta como uma racionalidade que organiza nossas vidas individual e coletivamente. Ele aparece quando chamamos uma pessoa com deficiência de “especial”, negando a possibilidade de que ela também tenha uma vida ordinária. É visível quando consideramos que uma pessoa com deficiência tem “necessidades especiais” quando tudo o que ela demanda, como qualquer outra pessoa, são os seus direitos garantidos. O capacitismo se manifesta nesses momentos, quando usamos termos como “especiais” para esconder os atributos constituintes da vida humana. Também é capacitismo quando uma mulher é tratada como menos capaz que um homem, o negro é visto como menos capaz que o branco, o homossexual é tido como menos capaz que o heterossexual, o gordo é considerado menos capaz que o magro, e a pessoa autista é entendida como menos capaz que a não autista. Em suma, o capacitismo é um componente constituinte da atual ordem social, não uma exceção.
Com isso, queremos dizer que quando, na escola, fomos chamados de “retardados” devido a nossos comportamentos e desempenhos diante de avaliações, quem nos disse essa palavra não foi apenas um indivíduo, mas toda a sociedade que antecedeu essa pessoa e que ela, em sua vida, levou adiante. Os episódios de bullying em tempos escolares, causados por colegas crianças e por professores adultos, não foram cenas avulsas de uma realidade isolada que, por azar, ocorreu conosco. Na verdade, foram tão somente expressões da regra, da valorização da nossa vida a partir daquilo que consideravam necessário que nós fizéssemos como eles para sermos valorizados, entendidos também como humanos.
Por essas razões, iniciativas, ações e programas como o proposto neste material são tão relevantes: é imperativo que a discriminação e as violências por ela justificadas sejam interrompidas. E uma das vias para essa construção é a informação e a transmissão não apenas de conhecimento e informação, mas também de experiências individuais, coletivas, familiares, profissionais, públicas e privadas. É indispensável fazer perceber que, no mundo, ocupamos planos em comum: o da história que sustenta nossos modos de vida coletiva e o da experiência humana, que pode ser tão heterogênea, diferente e diversa.
Prevenir e combater o bullying, portanto, é um trabalho para todas as pessoas que desejam que todo ser humano sempre seja entendido como gente. É uma missão pedagógica, familiar, pessoal, profissional, ética, política, interseccional e, sobretudo, coletiva! Um ofício árduo, que não teve seu início em nosso século, mas que nos permite vislumbrar belos resultados na atualidade. É o caso de movimentos e organizações, como a ONDA-AutismoS e tantas outras associações e mobilizações que, nas mais variadas frentes, lutam pelos direitos das pessoas com deficiência, incluindo entre elas nós, as pessoas autistas.
Desejamos uma boa leitura para todas, todos e todxs, e além disso, muita força e ânimo para as pessoas que, como nós, seguem na luta diária por uma sociedade brasileira cada vez menos capacitista e verdadeiramente mais inclusiva!
João Ferreira e Pedro Ferreira
João Vitor Ferreira – Conselheiro Municipal da ONDA-AutismoS Timbó/SC; Palestrante; Atleta da Seleção Brasileira de Judô para todos e campeão Mundial na Alemanha, Fisioterapeuta; Pós-graduando em Judô Aspectos Metodológicos, Teoria e Prática. Síndrome X frágil, Deficiente Intelectual e Autista.
Pedro Ferreira – Conselheiro Profissional da ONDA-AutismoS; Psicólogo com experiência na educação pública; Pesquisador do Laboratório de Estudos de Educação, Diferenças e Inclusão (LAEDI); Mestrando em educação; Pós-graduado em Análise do comportamento aplicada para TEA e Deficiência Intelectual.