14 de março de 2022
Tempo de Leitura: 5 minutos
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Por Fábio Cordeiro
Presidente da ONDA-Autismo
Essas são perguntas que me faço cada vez que penso em inclusão e no processo de aprendizado, principalmente quando se trata de alguém que não esteja dentro dos padrões que a nossa sociedade impõe como modelo de normalidade.
A escola deveria ser um ambiente de aprendizado. O professor deveria ser um guia para esse processo do aprender. Mas, por muito tempo e ainda hoje, deturpamos o real sentido do que é importante aprender. Pior ainda, resolvemos quantificar em forma de escalas se alguém aprendeu algo e fazemos juízo de valor sobre esse aprendizado qualificando, de 0 a 10, para definir se o aluno aprendeu ou não.
Aluno bom é aquele que tira nota alta! Esse tem o mérito de seguir adiante, de passar para a próxima fase. E as fases esqueceram o crescimento intelectual, cognitivo, moral, esqueceram o crescimento interior onde se aprende a viver entre os pares. As fases ignoram os intelectos e supervalorizam as notas.
O ensino, ao invés de ser algo que apresenta aos alunos novos conhecimentos e desafios que os incita a evoluir, neurofisiologicamente falando, tornou-se algo que busca apenas um número para dizer se alguém é bom ou não.
Como exemplo disso, vamos pensar juntos aqui, quantos de nós hoje na vida adulta lembramos da fórmula de Bhaskara? Quantos aqui são capazes de explicar uma ligação covalente? Para não ficar só nesse campo, desafio a pensarmos quantos aqui são capazes de realizar uma análise morfológica de uma expressão?
Aposto que os que conseguem responder afirmativamente as perguntas acima são apenas as pessoas que decidiram trabalhar nas determinadas áreas em questão. Ainda assim, muito provavelmente, se consegue responder uma delas, não tem tanto sucesso assim nas outras por serem de áreas diferentes. Indo mais longe, ouso arriscar que, mesmo para quem consegue lembrar-se de alguma dessas questões, deve-se ao fato de que o assunto foi revisitado em sua graduação, e não porque lembra do que lhe foi apresentado no ensino regular.
E aonde quero chegar com isso? Apenas quero mostrar que é importante sim que tenhamos sido apresentados a essas questões durante os anos letivos. Porém, não para tirar uma nota boa, mas sim para que, naquele momento do nosso desenvolvimento, nosso cérebro seja desafiado a trabalhar de forma que nosso cognitivo avance e alcancemos nosso máximo potencial neurológico.
Não é para saber Bhaskara que nos ensinam a fórmula, mas sim porque, naquela fase do desenvolvimento, são aquelas habilidades que precisamos desenvolver, e isso se dá através do desafio que aquela atividade propõe ao nosso cérebro. Não tem nada a ver com nota de 0 a 10. Tem a ver com a fase de desenvolvimento que estamos a seguir naquele momento.
Imaginem, por exemplo, outra fase de nossas vidas, um pouco antes dessa quando somos apresentados às ligações covalentes ou às fórmulas de Física. Quando um aluno está nos primeiros anos da sua vida escolar e a atividade é fazer um recorte de um desenho e uma colagem… Naquele momento, fica até ridículo pensar que alguém daria nota 10 ou nota 5 para aquele recorte. É fácil de entender que o que importa naquele momento é que o aluno ganhe habilidades, que desenvolva, ao usar uma tesoura, sua coordenação motora fina, para que mais adiante possa segurar um lápis com destreza para executar movimentos de escrita.
Então, como nos outros exemplos, na vida adulta, não é necessário que você tenha sido o melhor recortador para que tenha êxito no seu desenvolvimento. Basta que tenha sido exposto àquilo e que tenha sido útil para seguir à fase adiante. O recorte “nota 10” não é melhor que o recorte “nota 5”; desde que o segundo tenha alcançado seu máximo potencial, o objetivo foi alcançado.
E tem a ver com isso, com desenvolver o seu potencial. E aí, todos são diferentes. Alguém pode ser um ótimo físico, um ótimo matemático, médico ou engenheiro, outro pode ser o melhor cozinheiro, ou o melhor pintor, músico, cabeleireiro ou mecânico. E todos esses papéis são importantes em nossa sociedade. O problema é que essa sociedade, nossas escolas, punem esse segundo grupo, como se fossem menos dos que os nota 10. E o ser humano não é uma nota. Não é um número que define se alguém é bom ou ruim, ou pelo menos não deveria ser. Com certeza, não deveriam ser os professores esses que pensam que a nota é o que importa. Mas são!
Meu filho é adolescente e está no Ensino Médio. Ele, já há algum tempo, não acompanha essas fórmulas matemáticas, não entende por que tantas letras nas contas e não apenas números. Ele não sabe a fórmula de Bhaskara. Durante o ensino fundamental, ele foi exposto a todas essas questões e teve seu desenvolvimento intelectual, na mesma medida em que seus pares, estabelecido ao ponto a que eram propostos esses desafios.
Ele não tinha notas boas, mas os professores entenderam que aquele aluno acompanhava o intelecto propício para seguir em frente e assim o aprovavam para a próxima fase.
Ele evoluiu. Ele é muito inteligente, muito! E ele não sabe a fórmula de Bhaskara. Isso não importa, ele quer ser chefe de cozinha. Para ser mais exato, isso não deveria importar, mas sempre tem a questão das notas. Aposto que ele pode ser um dos melhores chefes de cozinha do mundo. Ele é muito inteligente, não deve nada aos pares da mesma idade.
Porém, sempre tem a questão das notas! Agora, no Ensino Médio, lhe falta a base para fazer cálculos complexos que exigiriam aquelas fórmulas que ele não trouxe lá de trás. Ele não vai ter notas boas. Porém, ele trouxe muito mais coisas lá de trás. Essas realmente importantes que são o pilar para uma vida digna.
Ele trouxe a força de sempre ser visto como alguém que está aquém do que a cor no número do boletim exigia, mas que seguia em frente. Ele trouxe uma compreensão da vida que poucos de sua idade têm. Ele trouxe uma maneira diferente de fazer as coisas: sempre vê um lado bom mesmo nos momentos mais difíceis e eu duvido que alguém que converse com ele e que se proponha a conhecê-lo, sem olhar antes para uma nota num boletim, tenha a capacidade de dizer que ele não é inteligente e que não deveria estar na série escolar em que está.
Se fosse apenas por notas, talvez ele ainda estivesse na sexta série. Mas e que ganho ele teria em perder a chance de estar com seus pares da mesma idade e se desenvolver como cidadão? Que ganho teria a sociedade em, ao não reconhecer que um indivíduo não é apenas uma nota, podar as aspirações desse aluno quando qualquer professor que se propor a conhecê-lo mais a fundo vai perceber que ele é tão ou mais capaz que aquele outro aluno nota 10?
Mas agora, como eu já disse, meu filho está no Ensino Médio. Essa semana, ao conversar com os professores dele numa reunião que marquei porque ele está muito preocupado com suas notas que não são boas, ao explicar todas essas questões de que ele não acompanha bem os conteúdos acadêmicos desde o Ensino Fundamental, mas que seu intelecto vai muito bem em relação aos pares da mesma idade, ao deixar claro que, nos anos letivos anteriores, ele sempre seguiu adiante, pois a perda seria muito maior em relação ao seu desenvolvimento se ele ficasse retido na mesma série do que simplesmente o contexto acadêmico demandava, a reposta que eu tive foi avassaladora.
“Os professores aqui não vão dar nota!”
Em nenhum momento eu pedi nota. Eu pedi foi para que ele pudesse seguir adiante. Pedi para que vissem que ele é capaz independentemente de nota. Pedi para ele ter a chance de terminar o Ensino Médio e fazer a faculdade de Gastronomia. Ele está no primeiro ano do Ensino Médio e reprovar não fará com que ele resgate toda a bagagem de fórmulas e análises que ele não pegou lá no Ensino Fundamental. Reprová-lo só vai punir. E ensino não deveria ser punição. Para que serve a escola? Qual a função do professor? Punir?
“Alguns professores são mais compreensivos, outros não.”
Essa foi outra afirmação que ouvi naquele dia. Inclusão não deveria depender de compreensão. Inclusão deveria ser uma regra, e não a exceção.
Meu filho é autista. Ele não aprende da mesma maneira que outras pessoas talvez aprendam. Ele é inteligente! Ele é muito inteligente! Ele não sabe a fórmula de Bhaskara!