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“A afetividade se dá numa relação de alteridade, onde eu existo na minha individualidade porque o outro existe, é um espaço relacional que permite que eu reconheça a mim e ao outro.” (Fernandes, 2002)
Ser irmã de uma pessoa com necessidades específicas é como ser irmã de qualquer outra pessoa. Dependendo da perspectiva que escolhemos enxergar, podemos encarar como oportunidade de potencializarmos nossas habilidades socioemocionais, como aprender a sermos mais empáticos, mais resilientes, gratos pelas pequenas conquistas e, principalmente, valorizar o melhor potencial do outro, independente de qualquer diversidade funcional, respeitando a dinâmica de cada um, inclusive o nosso próprio tempo.
É claro que podemos trabalhar tais habilidades mesmo se não tivermos irmãos com deficiência. Acontece que, ao fazer parte de um círculo familiar com necessidades específicas, nosso olhar para a diversidade se torna mais apurado. Seja porque precisamos acompanhá-los nas terapias junto com nossos pais desde pequenos, seja pela responsabilidade de levá-los para a escola (muitas vezes sem a companhia dos pais) ou de verificar se os colegas estão tratando bem a pessoa que amamos.
Aprendemos, desde crianças, nomes difíceis de metodologias terapêuticas e funções genéticas, às vezes sem saber de fato seu significado, mas entendendo que é necessário aprendê-los para argumentar, quando necessário.
Algumas vezes nos perdemos em meio a tantos estímulos e acabamos esquecendo de ouvir nossas próprias demandas internas. Essa falta de escuta interna pode ser refletida em diversas fases da vida, resultando na dificuldade de nos relacionarmos com os colegas, na autoestima e segurança para funções de liderança, podendo até incorrer em dúvidas sobre decisões futuras, tamanha a responsabilidade que nós, irmãos, atribuímos a nós mesmos desde crianças.
“Quando eu tinha cinco anos de idade, perguntei para minha mãe o que o Mateus tinha de diferente. Ela me explicou que ele tinha autismo e que eu teria duas opções: amá-lo ou rejeitá-lo. Então, respondi: eu quero amar, mamãe!”, escreve Fernanda Ferreira Azevedo, no blog Eu sou Irmã do Matheus.
A notícia aos irmãos
Outro aspecto muito importante é que o momento da notícia seja pensado na perspectiva dos irmãos. A informação cuidadosa é uma forma de acolhimento num momento em que naturalmente nos sentimos preteridos, simplesmente pela chegada de mais um membro à família. O olhar holístico da equipe médica para os irmãos de pessoas com deficiência é um grande diferencial na saúde emocional da família e pode ajudar a fortalecer vínculos de apoio nessa etapa. Acredito que não haja um momento certo para contar sobre o autismo, ou a trissomia 21, ou a síndrome de Williams, ou qualquer tipo de deficiência. O importante é que os irmãos sejam sempre tratados com muito carinho e atenção, igualmente. Em algum momento eles poderão questionar sobre diferenças percebidas e, nessa hora, é importante explicar de forma clara e aberta as características da deficiência, sem gerar estigmas ou regras, lembrando que cada ser humano é único em seu potencial e linguagem.
Também é recomendado manter a escuta ativa, praticar a Comunicação Não Violenta (CNV), o não julgamento, evitando que haja assuntos tabus, como relacionar a deficiência à doença, o que pode criar uma relação capacitista até mesmo entre irmãos. Esse tipo de olhar impossibilita o protagonismo dos irmãos (com e sem deficiência) e o impulso à construção de seus próprios projetos de vida.
Incentivar momentos de convivência entre irmãos e convivência inclusiva com outras pessoas com deficiência, desde a infância, fará com que todos se sintam pertencentes ao processo de desenvolvimento, em todas as fases da vida, até o envelhecimento.
Quando esse acolhimento não ocorre é muito comum a sensação de que nós, irmãos, não somos mais importantes, por constatar maior investimento de tempo de nossos pais em cada etapa de desenvolvimento, quando deixamos de ser vistos, ouvidos e até mesmo percebidos dentro do círculo familiar. Isso pode acontecer extrapolando nossa própria casa, estendendo-se a toda família, em encontros com primos, tios, avós, e também na escola.
Pode haver a sensação de que só querem saber sobre nossos queridos irmãos porque eles são, muitas vezes, estereotipados erroneamente como carinhosos, fofos, delicados, inteligentes, com altas habilidades, entre outros adjetivos que nem sempre fazem sentido, e poderiam ser atribuídos a nós também, não é mesmo? Viramos “a irmã do fulano”, esquecem-se até do nosso nome próprio! Toda essa situação somatiza, acumula sensações que não sabemos verbalizar, e podemos sentir raiva, angústia, tristeza, ciúmes, medo do futuro e até vontade de ser como eles, por que não? Assim conseguiríamos, ilusoriamente, toda atenção de volta.
Ou, ao contrário, podemos ser apáticos, não sentir nada em relação ao volume de novas informações que recebemos, e quando nos damos conta, estamos descontando esse vazio interno em outras áreas da nossa vida, como na dificuldade de nos posicionarmos profissionalmente, por exemplo. Essas sensações devem ser respeitadas e validadas, pois junto com cada uma delas existe, na maioria das vezes, um amor infinito.
“Ele fez com que eu me interessasse em trabalhar com pessoas na área da saúde”, diz Tatiana Olles, irmã do Luiz Paulo, de 32 anos, autista, referindo-se ao impacto na construção da sua personalidade e na maneira de se relacionar, além da grande influência do irmão na decisão de sua profissão, em tecnologia oftálmica. Ela assume que já quis ter a deficiência do irmão para conseguir atenção dos pais, e hoje, ante a idade avançada deles, sente “como se o cajado estivesse sendo passado” para assumir em breve a tutoria do Luis Paulo.
Inclusão para todos os filhos
É muito importante que a família inclua os irmãos de pessoas com deficiência dedicando um tempo exclusivo apenas a eles, seja para um passeio, almoço ou conversa. Não precisa ser muito tempo, mas que seja um tempo de qualidade para sentirem que continuam sendo importantes. Esses momentos de convivência promovem reconhecimento e prazer de estar junto, mesmo depois de adultos. Falar sobre assuntos diferentes também ajuda a criar uma identidade afetiva própria, entre pais e filhos, para além da deficiência.
Vale também ressaltar que os irmãos (com e sem deficiência) percebem quando não há um bom relacionamento familiar, principalmente quando a concentração está na deficiência. Nesses casos pode haver desorganização, sentimento de insegurança e, por não saberem expressar seus sentimentos, os irmãos podem ter reações que pareçam agressivas ou exageradas, mas que são uma maneira de se fazerem notados, como que dizendo: “Olha, estou aqui! Quero que me escutem, não respondam por mim e nem discutam por minha causa!”
Além disso, os irmãos podem compartilhar responsabilidades durante toda a trajetória de vida, permitindo aos pais que tenham momentos individuais, para que a mãe ou o pai sintam-se menos sobrecarregados. Mas, calma, isso não quer dizer que os irmãos assumiram o papel dos pais. Pelo contrário, o objetivo é estimular que tenham momentos de prazer e aprendizagem juntos, como em dividir tarefas domésticas (sem que outra pessoa faça isso por eles) por exemplo: cuidar para manter suas camas arrumadas, limpar cômodos da casa em dias específicos, lavar a louça, preparar o almoço em conjunto, enquanto os pais saem para um passeio. É possível montar um cronograma, uma agenda doméstica em que cada um seja responsável por sua tarefa.
“Eu me preocupo com o futuro do meu irmão, David, de 29 anos, que entre outras características tem síndrome de Down. Com o advento da pandemia, ele ficou recluso, não quer socializar tanto, e começou a apresentar sinais de agressividade. Desde quando morava com meus pais pedia que eles não discutissem na frente dele e ajudassem colocando limites e atribuindo responsabilidades que o ajudassem na organização da casa e, consequentemente, [na organização] interna dele mesmo. Tudo influencia no equilíbrio e satisfação pessoal. Saber que temos autonomia e somos capazes de cumprir tarefas demandadas é gratificante para todos”, Débora Goldzveig.
Essa pode ser uma forma divertida de um zelar pelo outro estabelecendo confiança. É importante reforçar que não haja a troca de papéis como “irmães” ou “irpais”, ou seja, cada um deve respeitar o espaço do outro, sendo a relação fraterna saudável e, mesmo com os conflitos naturais, nunca tendendo ao domínio ou controle, nem à sobrecarga por atribuições de cuidado inerentes aos pais ou responsáveis.
É ainda muito importante que o capacitismo, também conhecido como preconceito disfarçado de mérito, não esteja presente. Trata-se da discriminação velada através da subestimação, inferiorização da capacidade e de aptidões, em virtude das diversidades funcionais. Por exemplo: permitir que o filho/irmão com deficiência faça uma série de coisas que outros irmãos não podem ou das quais discordam. Regras devem valer para todos! Esse tipo de desigualdade, além de gerar sentimentos negativos, faz com que a pessoa com necessidades específicas se acomode e se sinta incapaz. Mesmo que possa não parecer, ela percebe que está sendo superprotegida. Resultado? No futuro, essa pessoa terá mais dificuldade em se relacionar, ter amigos, ou conseguir um emprego, o que será mais penoso tanto para sua própria vida, quanto para os pais ou quem assumir sua tutoria (na grande parte dos casos, os irmãos). Por isso, todo esse processo de convivência e sentimento de pertencimento são essenciais desde a infância. É um olhar responsável, de mediação constante, que refletirá em um futuro saudável, físico e emocional.
“E é então que as perguntas começam a surgir, com os primeiros entrevistadores me perguntando como é ter um irmão como Noah, um autista. Eu sempre respondo: não sei como é ter outro tipo de irmão.” Karl Taro Greenfeld, autor do livro Sinto-me Só.
A informação é a ferramenta mais poderosa para a acessibilidade plena. Estejamos sempre em busca de atualizações nos campos da sustentabilidade, dos negócios, da tecnologia, medicina, genética, nutrição, legislação e contribuindo para que redes de apoio e inclusão na educação, no esporte, assistência social, lazer, saúde e cultura sejam fortalecidas. O conhecimento permite que nos posicionemos com naturalidade em situações complexas de bullying e preconceito, e ajuda a ampliar a visão do círculo social em que estamos inseridos para a compreensão da individualidade de cada um. E isso se refere também a pessoas negras, obesas, idosas, de outras religiões, de toda a diversidade de gênero e indígenas. Refere-se a todos que, por não atender ao padrão de normatização social, são discriminados.
Seja você também um impulsionador da transformação, agente responsável pela construção de uma sociedade mais inclusiva e diversa. Seja um embaixador da inclusão! O protagonismo e a mudança de atitude estão em suas mãos.