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Estima-se que possamos ter 2 milhões de pessoas no TEA (Transtorno do Espectro do Autismo), no Brasil. Já em países da Europa, cerca de 85% dos autistas estariam fora do mercado de trabalho. Apesar de não termos números a respeito disso no Brasil, empresas da área estimam que por aqui não seja diferente, em grande parte, devido a dificuldades de incluírem autistas em seus quadros funcionais.
Para Liliane Rocha, CEO e Fundadora da Gestão Kairós, consultoria de sustentabilidade e diversidade, essa situação está mudando: “Do ano passado para cá, temos visto alguns avanços”. Com tantas pessoas autistas no país, é preciso desenvolver ferramentas e estruturas para que as empresas possam contratá-las e permitir que tenham os mesmos direitos de qualquer outro profissional.
Autistas no mercado de trabalho – meta ou realidade?
A Legislação de 1991 determinou que as empresas com mais de mil funcionários tenham mais de 5% dos seus quadros ocupados por pessoas com deficiência, mas 30 anos depois, barreiras para incluir as pessoas com deficiência em geral permanecem. Tal dificuldade é motivada pelo desconhecimento das empresas sobre como essa mão de obra pode ser benéfica, tanto para a pessoa com deficiência, quanto para a empresa. As barreiras são ainda maiores quando se trata de inclusão de pessoas com deficiência intelectual.
Empresas apostam no perfil de funcionário autista
O blog.ieac.net.br cita o caso da empresa internacional Auticon, prestadora de serviços na área de TI (Tecnologia da Informação), que contrata consultores de tecnologia autistas. Essa contratação começou quando o gerente de Recursos Humanos percebeu que muitos autistas apresentam habilidades acima da média, em relação aos neurotípicos, como serem mais detalhistas e analíticos. Essas habilidades são disputadas em empresas de TI. Dos mais de 200 colaboradores que trabalham na Auticon, cerca de 150 são autistas, distribuídos pelas unidades da empresa na Alemanha, Reino Unido, França, Suíça e Estados Unidos.
No Brasil, a Organização Social de origem dinamarquesa, Specialisterne, promove a formação, capacitação e inclusão de pessoas autistas em empresas e organizações, desde 2016. O diretor geral da empresa, em São Paulo, Marcelo Vitoriano, 54 anos, é psicólogo e, nos últimos 4 anos, tem se empenhado em levar a neurodiversidade para dentro das empresas.
O apoio da Specialisterne a pessoas autistas acontece com o treinamento para desenvolver algumas habilidades e na preparação para o mercado de trabalho que é altamente competitivo. Na outra ponta, a organização também prepara as empresas para receberem pessoas neurodiversas. O diretor geral se emociona ao falar da história de tantas pessoas que não conseguiam entrar no mercado e hoje trabalham e impactam positivamente a realidade das empresas. Mais importante, essas pessoas estão mais felizes.
A empresa oferece curso gratuito de formação, com duração de 4 meses na área de tecnologia, e é procurada, geralmente, por autistas maiores de 18 anos, que apresentam dificuldade de inserção no mercado de trabalho. Além disso, a empresa atua no desenvolvimento de algumas habilidades sociais de seus alunos, não para mudá-los, mas para que eles possam desenvolver estratégias sociais. Ao término da formação, a equipe da Specialisterne faz a mediação para a entrada da mão de obra neurodiversa em empresas parceiras.
Marcelo afirma que “não adianta preparar as pessoas e jogá-las em empresas onde não há conhecimento sobre pessoas neurodiversas. “É por isso que queremos criar nas empresas, uma cultura de acolhimento adequado para receber o profissional neurodiverso. A criação da cultura de diversidade e inclusão de fato passa pelo ingresso na empresa de pessoas com todas as características: pessoas neurodiversas, disléxicos, de diferentes etnias, raças, faixas etárias, orientações sexuais”.
A inteligência no TEA
Estudos recentes, desenvolvidos na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, questionam as evidências que apontam a alta taxa de ocorrência de Deficiência Intelectual (DI) no Transtorno do Espectro Autista. Para a pesquisadora Daniela Teixeira Gonçalves, 31 anos, essa evidência é questionável, uma vez que, de modo geral, os testes de inteligência, como por exemplo, as Escalas Wechsler de Inteligência, pressupõem a habilidade de compreender e/ou produzir a linguagem, habilidade essa, frequentemente deficiente no autismo. A conclusão, portanto, é de que seria possível, ao utilizar esses testes, subestimar a inteligência desses indivíduos.
Daniela Gonçalves é psicóloga, doutora em cognição e comportamento pela UFMG, e explica que essa subestimativa ocorre porque a capacidade de uma avaliação exata estaria comprometida pela falta de instrumentos adequados, além do pouco conhecimento sobre o autismo.
Mais recentemente, a variação natural dentro do espectro levou os pesquisadores a entender a DI como condição coexistente ao autismo e não como evidência diagnóstica do espectro. A doutora Daniela esclarece que testes padrão ouro¹, de medição da inteligência, exigem muito a compreensão da linguagem em seus questionamentos e o uso da linguagem verbal nas respostas. Dessa forma, quando esses testes padrão são aplicados a pessoas autistas, eles podem apresentar resultados que subestimam sua inteligência, pois não levam em consideração a inteligência fluida responsável pela capacidade de pensar e raciocinar de forma abstrata e de resolver problemas.
Os testes medem somente a inteligência cristalizada, que envolve o conhecimento resultante de aprendizagem anterior e experiências passadas. Ou seja, o aprendizado, em grande parte, vem dos relacionamentos sociais, o que coloca os autistas em desvantagem.
Entretanto, os pesquisadores, atualmente, têm grande preocupação em corrigir essas distorções na aplicação de testes de Quociente de Inteligência – QI², com a utilização de instrumentos adequados a nossas múltiplas inteligências.
Neurodiversidade que inspira
A tendência de iniciativas para a inclusão dos autistas no mercado de trabalho não tem volta devido à relação “ganha-ganha-ganha” entre os três envolvidos: empresa, funcionário autista e cliente. Ou seja, todos os envolvidos nesse processo têm ganhos perceptíveis. Um bom exemplo dessa nova realidade é dado pela Kantar Ibope Media, a divisão latino-americana da Kantar Media, líder global em inteligência de mídia. Com operações em 15 países latino-americanos, a Kantar Media, atualmente, é a maior companhia do mundo em medição de audiência de televisão. Em trabalho muito mecânico e processual de sua área de medição do investimento publicitário, os funcionários “assistem” a 14 horas de programação, em uma hora, para codificar os comerciais que escaparam ao algoritmo.
Foi dessa maneira que Suzana Kubric, 41 anos, diretora de Recursos Humanos da Kantar e responsável pela diversidade e inclusão, dentro da empresa, na América Latina, percebeu que a natureza do trabalho exigia muita atenção a detalhes, rotina. Por causa da natureza da função, pessoas neurotípicas conseguiam se manter no cargo somente por, no máximo, 3 anos. Há 4 anos, Suzana assumiu a diretoria de RH com o sonho de encontrar funcionários com deficiência que suprissem essas necessidades da função, utilizando suas potencialidades.
A Kantar possui um programa de inclusão e diversidade e foi por intermédio dele que Suzana buscou um grupo de pessoas detalhistas e que gostassem de rotina. Direcionada à Specialisterne para o trabalho de inclusão de neurodiversos, foi criado um projeto-piloto com duas vagas.
A diretora ressalta: “o processo seletivo tem de ser adaptado pois, comumente, o recrutador e o líder que avaliam as pessoas, já têm um viés inconsciente, que padroniza a expectativa do profissional desejado”. Suzana insiste que é preciso esclarecer as características específicas do entrevistado neurodiverso, como não olhar no olho, a presença de movimento repetitivo ou a manifestação de fobia social. É aí que entra a parceria com a Specialisterne que faz uma pré-seleção de pessoas que se adaptem à determinada função. Só depois dessa seleção preliminar é que o candidato é entrevistado pelo líder do time. À essa altura, os líderes também já estão preparados e conscientizados sobre o perfil do candidato autista. O foco é sempre nas potencialidades e não na deficiência.”
O piloto foi um sucesso e, após 6 meses, os gestores solicitaram ao RH mais 8 vagas. Um dos candidatos a essas novas vagas não se adaptou à função, assim como pode acontecer com pessoas neurotípicas. Ficaram nove funcionários autistas mas logo veio a pandemia. Suzana lembra que não foi fácil pois houve uma suspensão de contratos, embora esses funcionários continuassem recebendo. Mas só depois que os gestores já estavam tranquilos na gestão, à distância, das equipes de neurotípicos é que os neurodiversos passaram a atuar em home office. Entretanto, algumas atividades foram eliminadas, mas a equipe de RH conseguiu realocar o pessoal em outras funções, com novos treinamentos à distância.
Por tudo isso, a diretora celebra que “a pandemia tem sido um período de grande aprendizado para a Kantar, para a família e para os neurodiversos que tiveram de absorver todas as mudanças, fora do ambiente da empresa. Foi um momento de autopercepção para eliminar pensamentos engessados e criar uma segunda visão para as diferentes situações surgidas”. A diretora de RH enfatiza que “é preciso agir com muita empatia e clareza, para alcançar uma inclusão genuína.”
Autista fora do mercado de trabalho
De quem é essa ‘culpa’?
Segundo dados colhidos junto a empresas de intermediação no mercado de trabalho, apenas 15% dos autistas com diploma de nível superior estão empregados, o que, para muitos, é justificado por suas limitações. Mas não é bem assim, como nos mostra Márcia Moreira Machado, 44 anos, que trabalha na SAP SE Executive Board, uma empresa líder de mercado em software empresarial que, como uma organização global, conta com funcionários de mais de 150 nacionalidades.
Márcia é autista, diagnosticada já adulta, trabalha na SAP como desenvolvedora de softwares há 5 anos e já foi responsável pela acessibilidade dos produtos. Ela conta que não concluiu a graduação pois não conseguia permanecer muito tempo em sala de aula,a faculdade que ela cursava não tinha um programa de ensino à distância e quando faltava somente apresentar seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) ela mudou de cidade sem concluir a graduação.
Márcia foi direcionada para ser school master de um time. Ela conta que “iria organizar, perceber problemas antes que acontecessem, possibilitar que o time fluísse no trabalho sem problemas” e completa: “Eu não entrei como funcionária de cota, para preencher número. Eu fui direcionada a uma função por minhas habilidades”. Entretanto, houve acompanhamento e adaptações na comunicação, para a hipersensibilidade sensorial entre outras.
A mulher autista é muito diferente do homem autista e Márcia acredita que as empresas que fazem essa intermediação deveriam atentar mais a essas diferenças. Para ela, “ainda esperam muito que a profissional autista mulher seja igual ao homem autista”. Mas, ela acrescenta, “existe um time de diversidade e inclusão que promove palestras e conversas para que as pessoas compreendam melhor umas às outras, para diferenças de etnias, culturas, sexuais, de idade e de deficiências”. Márcia conclui que “o quadro de funcionários é muito diverso, portanto, o cuidado e as ações devem ser constantes.”