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As taxas crescentes de crianças com autismo geram demandas de todas as ordens e dificuldades que não desaparecem quando a infância termina. O aumento drástico da prevalência ao longo das duas últimas décadas pressupõe, inevitavelmente, que o número de adultos com autismo também cresceu, impondo às famílias questões centrais, presentes e futuras, sobre onde e como eles irão morar.
Por sua vez, o aumento do desejo de autonomia entre os jovens no espectro do autismo é uma realidade percebida nos lares e em instituições que fazem a escuta desse público. Como o tema ainda é pouco abordado no Brasil, o desconhecimento gera insegurança e atrapalha a realização desse direito: o direito à moradia digna garantido em lei. Afinal de contas, há oferta de residências adequadas aos diferentes perfis das pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA)? A permanência de um filho no lar sob os cuidados da mãe, pai ou irmãos é uma escolha, ou uma imposição cultural associada à falta de opções? A quem cabe a decisão sobre onde morar, e que tipo de residência proporcionaria uma vida mais plena?
Essa escassez de informação, aliada à importância do tema, motivou a Revista Autismo a trazer, a partir desta edição, uma série de reportagens que tratam do desafio de viver fora do lar e longe da família, seja sob algum grau de proteção, seja na busca pela independência. A primeira parte conta com os esclarecimentos de dois defensores públicos, ligados por diferentes laços à questão: Renata Flores Tibyriçá, que é também mestre e doutora em distúrbios do desenvolvimento – e referência nacional quando se fala de direitos das pessoas com TEA – e Carlos Henrique Acirón Loureiro, responsável pela implantação na Defensoria Pública do Estado de São Paulo do núcleo de habitação e urbanismo, que coordenou por quatro anos.
Carlos e Renata são ainda autores de um dos raros artigos (de referência) sobre o direito de “acesso à moradia, inclusive à residência protegida” para as pessoas com TEA (capítulo do livro Direitos das Pessoas com Autismo, publicado em 2018, editora Memnon). Nesta reportagem, os defensores falam sobre a intensidade das demandas e a complexidade das soluções, apresentando as opções de moradia oferecidas pelo poder público e considerando a mudança de paradigma em curso – de um olhar limitador e asilar, para uma visão de autonomia e cuidados que não excluam os autistas do espaço social, e onde a cidade não seja um obstáculo à vida, mas um direito.
Sobre como se caracterizam as demandas relacionadas à moradia para o autista adulto:
Renata Tibyriçá: Desde 2010, quando eu comecei a atuar com o autismo, as demandas sempre foram de diversas ordens. As primeiras vinham com uma preocupação especial dos pais de adultos, principalmente com um grau de autismo severo (se podemos usar essa terminologia) de que eles não conseguiam mais manter e controlar o filho dentro de casa.
Eles estavam extremamente esgotados, alguns com quadros de depressão muito grave e sem condições de continuar exercendo esse papel de cuidador do filho. Quando a demanda chegava era normalmente com o pedido de uma internação.
No início era difícil esclarecer que a gente poderia tentar solucionar a questão de outra forma, porque o desespero era muito grande. Alguns pedidos foram feitos dessa forma – porque nós não tínhamos a Lei Berenice Piana, nem a Lei Brasileira de Inclusão, a prioridade na residência terapêutica era para pessoas vindas de internações em manicômios – então, alguns pedidos foram feitos para instituições que já existiam, com características asilares, que era o que a gente sempre teve do ponto de vista de moradia para a pessoa com deficiência: aquela ideia [do passado] de excluir a pessoa com deficiência da casa e colocá-la em uma instituição onde ela é cuidada.
A razão de os pedidos já chegarem com essa “fórmula” da internação:
Renata: O que era muito perceptível naquele momento era o desespero. O desespero do pai e da mãe de estar há anos, 18 anos, cuidando do filho, às vezes sozinho, sem poder exercer uma profissão, ou dependendo absolutamente de um BPC [Benefício de Prestação Continuada], não podendo sair de casa, num desespero de tentar localizar um lugar que esse filho pudesse ir para que ele conseguisse se reestruturar. Mas a sensação que eu tinha é que eles não enxergavam isso como a solução definitiva. Mas a exclusão que o filho viveu durante os anos todos, por falta de serviços públicos adequados – de saúde principalmente, e de educação – faz com que ele chegue à idade adulta num estágio em que esse pai não tem ninguém com quem contar – não tem família para contar, não tem uma instituição para contar, não tem um serviço público para contar, nem de saúde, nem de educação – e ele, no desespero, fala “eu preciso internar o meu filho”, que é a única coisa que ele tinha ouvido falar que era possível. Porque ele nunca tinha ouvido falar que existia uma residência terapêutica, ou uma residência inclusiva, ou que existia uma possibilidade de moradia para a vida independente. Ou mesmo um home care – um cuidador, ou um acompanhante de pessoa com deficiência dentro da casa dele.
Sobre a chegada da proteção dos dispositivos jurídicos e mudanças nessas demandas:
Renata: Existe ainda um pouco de confusão em relação à questão de “Quando eu não conseguir mais cuidar do meu filho eu vou precisar de uma internação”, ou seja, um local com característica asilar, e desconhecimento da existência de outros serviços que poderiam substituir esse local. Mas a gente ainda tem que lidar com o fato de termos muitos adultos que são vítimas de uma exclusão de serviços públicos do passado.
As modalidades de habitação que a pessoa com autismo tem direito de reivindicar e a residência protegia prevista na lei:
Renata: Residência protegida não existe. Existe na lei 12.764, de 2012, mas não existe uma regulamentação a respeito dela. Então ela é um direito, está lá garantido, ela poderia até ser exigida, mas não se sabe como é que ela vai ser executada. Dependeria, talvez, de um decreto para poder definir como o poder público executará essa residência protegida para a pessoa com autismo.
A residência prevista na tipificação do SUAS, que é o Sistema Único de Assistência Social, ela é definida como “residência inclusiva”. Que seria o quê? O similar à residência terapêutica – que existe no SUS, no Sistema Único de Saúde – mas é voltada para situações de transtorno mental, decorrentes principalmente da desinternação de manicômios, desinternações psiquiátricas.
E no SUAS, nós temos a residência inclusiva, que é voltada a adultos maiores de 18 anos, sem respaldo familiar, com prioridade para aqueles que recebem o BPC – também de casas para até 10 pessoas, com um cuidador 24 horas. Então, essas residências seriam similares no sentido de formato, porque ambas são casas, mas um seria uma visão da saúde, e outro a da assistência social, que no caso é a residência inclusiva, que seria de uma proteção integral da pessoa com deficiência.
A residência para a vida independente:
Renata: A mesma coisa a gente diz em relação ao centro de vida independente [previsto na Lei Brasileira de Inclusão] que também não tem um decreto específico de como vai ser efetivado e executado na prática, e gera essas diversas maneiras de tentar executar isso, de forma privada principalmente. Porque no [âmbito] público a gente não tem, também, definição de como isso acontece. A residência inclusiva tem. Inclusive definição dos objetivos – o que é que se busca com ela, tudo isso.
E o que a gente precisa pensar é como executar esses centros de vida independente. Nós não temos um programa público pra isso. Então, nós precisamos exigir isso do poder público. Que o poder público tenha um programa específico para isso.
Do conflito entre autonomia e o julgamento das mães, acusadas de “querer se livrar” do filho autista:
Renata: Na verdade o que mais queremos, quando temos filhos, é que os filhos (se casem ou não se casem) tenham suas vidas e vão morar sozinhos. E por que, com a pessoa com deficiência, a gente não pensa “Ah, um dia ele vai morar sozinho”? “Ah, mas ele tem limitações!” Tem, mas hoje nós temos formas, com tecnologia assistiva, com garantia de acessibilidade, de superar essas limitações e garantir apoio, desde que essa moradia seja pensada dessa forma.
Se a gente esquecer que essa é uma pessoa com deficiência, e com 30 anos o filho estivesse na casa dos pais o julgamento seria o inverso. A gente não pode pensar, e os pais não podem pensar, que os irmãos vão exercer esse papel. Por isso que trabalhar a autonomia e aceitar a capacidade plena da pessoa com deficiência, que é trazido pela Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, é tão importante. E buscar incluir em todos os sentidos.
Se a moradia frequentemente é um nó da política pública para a população em geral, esse assunto fica ainda mais polêmico e complexo quando somado às demandas da pessoa com deficiência e particularmente às de pessoas com TEA. Parece haver um afastamento recíproco entre grupos que discutem soluções para habitação e cidade, e grupos que reivindicam inclusão e qualidade de vida para os autistas.
Situando a questão da moradia para a pessoa com autismo no contexto de movimento por habitação:
Carlos Loureiro: Primeiramente existe um processo de luta que vive dificuldades imensas no país, em que ainda não se conseguiu encontrar soluções para problemas básicos de inclusão e de efetivação de políticas públicas para direitos sociais, tanto de educação quanto de saúde em especial. E quando você não tem soluções para esses problemas, o problema da moradia fica em segundo plano. Porque se você não consegue resolver o mais básico, o mais complexo você não consegue enxergar a necessidade e a importância dele.
Sobre causas “divorciadas” no movimento autista:
Carlos: Os movimentos de luta pela pessoa com deficiência [em especial pessoa com autismo] ainda não se apoderaram da necessidade de pensar o problema da moradia e, pior do que isso, eles não têm conhecimento a respeito da complexidade do problema, o que dificulta o encaminhamento correto do ponto de vista de política pública eficaz.
Talvez não exista informação suficiente, não exista maturação suficiente, maturação técnica, para perceber a importância do problema e a necessidade de você criar uma linha de luta mais ou menos unificada. Porque se não houver isso, o problema da moradia vai ser insolúvel. Se isso não vier de luta popular com a criação de políticas públicas perante o executivo, não é o judiciário a fonte de esperança para que essa transformação aconteça, do meu ponto de vista.
Concretizar soluções que atendam ao espectro do autismo pode levar muito tempo. A construção de um cenário mais promissor para as famílias, que viabilize propostas de moradia protegida e de vida independente, é o foco da segunda parte desta série de reportagens: “A utopia possível, ser autista e viver longe dos pais”, com uma síntese das soluções e entraves em residências projetadas especificamente para jovens e adultos com autismo e/ou com deficiência em outros países.