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Após polêmicas na internet, ativistas afirmam que Singer não criou o termo “neurodiversidade”
Em 18 de junho de 2023, a socióloga australiana Judy Singer provocou polêmica em seus perfis no Twitter e no LinkedIn. Ela, que historicamente foi considerada a responsável por cunhar o termo ‘neurodiversidade’, publicou uma mensagem de apoio à escritora J. K. Rowling, e afirmou que “não existe mulher trans”.
A atitude de Singer resultou em críticas e lamentos de ativistas autistas, incluindo colegas pesquisadores dos quais Judy recebeu créditos por suas publicações sobre neurodiversidade. Dias depois, alguns desses ativistas começaram a levantar a hipótese de que a australiana, na verdade, não teria criado um dos termos mais populares da história do autismo.
Origens
Existe um consenso entre a maioria dos autores de que o termo “neurodiversidade” é uma consequência direta da formação do ativismo autista em países como Estados Unidos, Austrália e Canadá, e que teve como um de seus pilares o ensaio “Não Chore por Nós”, publicado por Jim Sinclair em 1993. Sinclair foi uma das pessoas responsáveis por fundar a Autism Network International (ANI), a primeira associação de autismo fundada por autistas do mundo.
O ativismo autista, naquele período, estava se desenvolvendo a partir dos fóruns e listas de e-mail na internet. Por meio deles, pessoas autistas e com outros diagnósticos, de diferentes lugares do mundo, podiam trocar mensagens e promover um ativismo de autorrepresentação — em inglês: self-advocacy.
Uma dessas listas de e-mail foi o Independent Living Mailing List (ILMV), fundado em julho de 1996 pelo neerlandês Martijn Dekker, e que era aberto para diálogos entre autistas e pessoas com outros diagnósticos, como o transtorno de déficit da atenção com hiperatividade (TDAH). Singer foi uma das frequentadoras do ILMV enquanto cursava Sociologia na Universidade de Tecnologia de Sydney.
A história oficial geralmente contada é que, no ILMV, Judy conheceu o jornalista Harvey Blume. A partir da troca de mensagens entre os dois, Blume afirmou a existência de uma “pluralidade neurológica” e que Singer sugeriu, então, o termo “neurodiversidade”. Harvey teria sido, assim, a primeira pessoa a utilizar o termo em um texto publicado na revista The Atlantic, enquanto a perspectiva teórica sobre o tema seria desenvolvida por Singer em seu trabalho de conclusão de curso, em 1998.
Mas o criador do ILMV publicou um texto em 13 de julho de 2023 dizendo que era um “erro” ter creditado a Judy Singer a criação do conceito de neurodiversidade. “Encontrei provas de que o conceito de neurodiversidade estava completamente formado no meu grupo online de autistas ‘InLv’ já em outubro de 1996, muito antes da tese de Singer de 1998. O termo ‘diversidade neurológica’ também já era utilizado nessa altura. O conceito e o termo vieram ambos da comunidade mais ampla de pessoas autistas/neurodivergentes, e ninguém é o seu único criador”, disse Martijn Dekker.
A partir do texto, que acompanha transcrições de e-mail antigos trocados naquele período, Martijn descreve que Singer não tinha certeza se ela tinha realmente criado a expressão, o que mudou ao longo dos anos conforme a autora se sentia pouco reconhecida pelo termo. Os comentários de Judy sobre pessoas trans no Dia do Orgulho Autista foi o estopim para uma longa discussão.
Transfobia
Judy Singer já era considerada uma figura controversa nos debates sobre autismo e neurodiversidade por seus posicionamentos em temas como ativismo autista e o papel de familiares de pessoas autistas. Nos últimos tempos, no entanto, suas perspectivas sobre pessoas transgênero atingiram um novo patamar de polêmicas.
No Dia do Orgulho Autista, Judy além de compartilhar um tweet de J. K. Rowling, disse em outro tweet: “Não tem autismo? Você não pode se considerar autista. Você é branco? Não pode se chamar de negro. Portanto, se você é biologicamente homem, não pode se chamar de mulher. Se você é realmente uma mulher biológica, não se deixe enganar por seu próprio apagamento”.
Robert Chapman, uma das principais figuras da atualidade a abordar a neurodiversidade na academia, lamentou os comentários de Singer. “É muito triste ver uma das teóricas seminais da neurodiversidade ser pega pela ideologia transfóbica. Dito isso, parece claro que a grande maioria dos teóricos e ativistas da neurodiversidade continua comprometida com a libertação trans. Estamos unidos nisso, e juntos somos fortes”, disse.
Com a repercussão negativa, Judy desativou suas redes sociais e fez um pedido de desculpas. “Estou arrasada por ter prejudicado alguns de meus amigos e aliados mais próximos, com os quais estive por décadas”, declarou. Mais tarde, Judy apagou o texto e disse que tinha mudado de ideia. “Estou cancelando esse pedido de desculpas”, acrescentou.
De julho para cá, em seu perfil no Twitter, Judy fez críticas públicas a outros teóricos da neurodiversidade, como Nick Walker, mulher trans e autora do livro Neuroqueer Heresies. A ativista se disse “furiosa” com as declarações de “pura malícia” feitas por Martijn Dekker e endossadas por Robert Chapman e Steve Silberman. Walker, por sua vez, declarou que “Singer fez uma contribuição inestimável ao trazer o termo neurodiversidade para o discurso acadêmico, mas ela tem um histórico de capacitismo, transfobia e conduta não colegial”.
“Todos aqueles que estão desesperados para provar que eu não criei neurodiversidade têm, tiveram ou querem ter pênis. Ele [Martijn] claramente não tem a menor ideia sobre redação acadêmica: Citar alguém que consentiu em ser citado e derivar uma teoria a partir da junção de todas as pesquisas não é ‘roubar suas ideias’.”, afirmou Judy.
Legado
A escolha de Judy Singer em seus posicionamentos pode revelar vários questionamentos sobre como será percebida no futuro enquanto pesquisadora e ativista, e também sobre o seu papel dentro da história do autismo. Em entrevista, jialu pombo, doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e autista, considera a expressão neurodiversidade muito mais relevante do que Judy Singer, independentemente se ela tenha cunhado ou não o termo.
“Acredito que, enquanto pessoas, comunidades e movimentos sociais, temos o direito de escolher com quem nos aliamos e com quem dialogamos, e isso não é algo estancado, do tipo ‘uma vez aliado, pra sempre aliado’. Também acho que as coisas não são absolutas. Podemos concordar com alguém em alguns sentidos e discordar em outros, é assim que convivemos nas esferas pessoais, cotidianas, íntimas, não é?”, questionou.
Para jialu, a fixação de Judy e J. K. Rowling em questões trans revela uma insegurança quanto à identidade. “As pessoas ficam inseguras de perder a suposta estabilidade que suas identidades garantem a partir do momento em que outras identidades reivindicam espaço. Estou falando inclusive no sentido subjetivo — a pessoa cis se desestabiliza, se sente colocada em cheque, quando se depara com uma pessoa trans”, afirmou.
Desta forma, encara que o desconforto pode se tornar ação. “Então, muitas vezes a pessoa não tem ódio, mas está reativa e usa seu espaço para emitir opiniões mesmo que não saiba do que está falando. As pessoas querem garantir a manutenção daquilo que já é conhecido no repertório delas, e, muitas vezes, da reatividade partem para o ataque, por isso insistem em falar. Afinal, o discurso é uma arma poderosa”, concluiu.