7 de junho de 2024

Tempo de Leitura: 7 minutos

Membros do CNE trabalham arestas do documento, mas proposta ainda encontra divergências profundas

Em janeiro de 2024, o Conselho Nacional de Educação (CNE) apresentou, no evento Diálogos pela inclusão em Brasília (DF), o parecer 50/2023, também conhecido pelo seu título: Nortear. O documento traz diretrizes que envolvem o processo de educação de estudantes autistas, e teve participação de educadores externos e internos à comunidade do autismo.

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Não demorou para que o documento ganhasse tração na comunidade do autismo, seja pelas falas favoráveis de divulgadores como Lucelmo Lacerda e Flávia Marçal (que também trabalharam ativamente no documento), quanto discursos contrários de grupos ligados à educação e também de alguns ativistas autistas. O tema se tornou pauta em jornais de grande circulação, como Folha, Estadão e O Globo — e a hashtag #homologacamilo passou a ser utilizada em massa por internautas para pressionar o ministro Camilo Santana (PT-CE) pela homologação do parecer. Entre essas movimentações, estavam as divisões dentro da comunidade do autismo em torno da validade e importância do documento.

Articulações e divulgação pública

Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (UFPA), a advogada Flávia Marçal disse, em entrevista à Revista Autismo, que o documento está sendo revisado pela instituição. O retorno do parecer é uma articulação entre o presidente do CNE, Luiz Roberto Liza Curi, e o ministro Camilo Santana e tem o objetivo de ampliar diálogos frente ao debate acalorado nas redes entre ativistas, educadores e políticos.

Nos últimos meses, diferentes pessoas públicas internas e externas à comunidade do autismo tem se manifestado publicamente. Um deles é o professor e divulgador científico Lucelmo Lacerda, que deu entrevistas, fez palestras e falou sobre o tema até em programas como o Flow Podcast. Em uma entrevista dada à Folha de S.Paulo, se contrapôs a Maria Teresa Eglér Mantoan, pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) historicamente ligada a debates relacionados à educação e inclusão. Mantoan é alvo de críticas de Lucelmo há anos e, no livro Crítica à pseudociência na educação especial, lançado em 2023, afirmou que a perspectiva teórica da pesquisadora não é científica e poderia ser conceituada de “inclusão total” ao invés de “educação inclusiva”.

A inclusão total, segundo Lucelmo e outros ativistas da educação, seria uma corrente teórica sobre a inclusão que se posiciona contra qualquer tipo de adaptação educacional para o público com deficiência. Na coluna Vidas Atípicas, da jornalista Johanna Nublat e publicada pela Folha, Mantoan defendeu que “Não há condições de se adaptar nada para ninguém. Se precisa de uma professora que fique do lado do aluno ou outro tipo de profissional, não é mais inclusão. Inclusão não é colocar o menino na sala de aula, mas mudar o modo de se trabalhar com a turma toda, de forma que cada um possa mostrar que capacidades têm de desenvolver aquele assunto”.

Deputada estadual por São Paulo e jornalista, Andréa Werner (PSB-SP) esteve bastante envolvida em falas favoráveis ao parecer, e trouxe outros políticos de seu partido para o debate, como a deputada federal Tábata Amaral (PSB-SP) e o senador Cid Gomes (PSB-CE). Nas redes, Werner não poupou críticas a grupos contrários e disse, em um vídeo, que “a campanha contra o parecer está muito desonesta”. Segundo ela, uma associação de autismo que se posiciona contra o Nortear estaria bloqueando comentários de pessoas contrárias no Instagram.

O presidente da Associação Nacional para Inclusão das Pessoas Autistas (Ania), Guilherme de Almeida, por sua vez, se disse atacado nas redes por pessoas favoráveis ao parecer. Em entrevista ao podcast Espectros, afirmou que membros de sua associação teriam sofrido críticas de Andréa. “A deputada fez uma conversa individual, printou e colocou nas redes sociais dela, falando que dois jovens autistas estavam mentindo, estavam enganando a população, por não concordarem com o que ela acredita, ou com o que o segmento de mercado que apoia ela acredita”, contou.

Parte desses conflitos institucionais estão dispostos nas falas de ativistas, que ressoavam o argumento que 182 entidades da comunidade do autismo estiveram a favor do parecer e apenas duas teriam se posicionado contra, que seriam a Ania e a Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas (Abraça). As organizações argumentaram que o Nortear descaracteriza os processos pedagógicos, incentiva questões mercadológicas na educação e que não teria participação democrática.

Modelo médico x modelo social

Marçal disse que a etapa atual de revisão do CNE ao parecer tem três principais pontos para ajuste. O primeiro é atuar sob a crítica, feita por alguns ativistas, de que o documento é baseado no modelo médico da deficiência. Flávia discorda dessa perspectiva. “Existem pessoas que estão dizendo que o parecer defende que o estudante só tem acesso a direito à educação com laudo médico. É exatamente o contrário. O laudo não deve ser exigido para começar as atividades educacionais”, argumentou.

Nesse sentido, a advogada argumentou que o Nortear cita as legislações e marcos da deficiência, incluindo a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que foi ratificado no Brasil em 2009. Apesar de considerar que o documento não se baseia em uma perspectiva médica sobre a deficiência, Flávia concorda que o texto deve evidenciar melhor o modelo social da deficiência e que isso é um consenso entre todos os pesquisadores envolvidos no trabalho.

O debate sobre modelo médico e modelo social da deficiência remete, historicamente, aos estudos da deficiência britânicos que se iniciaram na década de 1960 e emergiram nas universidades especialmente a partir dos anos 1970. A crítica produzida pelos primeiros ativistas era de que as pessoas não eram limitadas por suas próprias deficiências, mas sim pelas barreiras sociais que enfrentavam. O modelo médico, então, seria a ideia de ajustar indivíduos para que se adequassem à sociedade.

O modelo social, nas décadas seguintes, passou por debates entre vários ativistas, incluindo mulheres com deficiência e cuidadoras de pessoas com deficiência, com a influência da teoria feminista. Elas concordavam que os primeiros teóricos fizeram avanços no debate da deficiência. Ao mesmo tempo, postulavam que, mesmo se todas as barreiras da sociedade fossem eliminadas, a deficiência ainda continuaria a existir. Esses debates, mais tarde, influenciaram a noção de deficiência na Convenção da ONU, que considera a deficiência um conceito em evolução que resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente.

Plano Educacional Individualizado

Outro ponto que está em foco no CNE em relação ao parecer é o papel e a importância do Plano Educacional Individualizado (PEI). A versão anterior do documento descrevia o PEI como “um documento que descreve todas as estratégias e recursos mobilizados pela unidade de ensino, para promover a equidade de aprendizagem para com as pessoas com o Transtorno do espectro autista”, e que seria um instrumento para efetivar as adaptações razoáveis para pessoas com deficiência previstas na Convenção.

Flávia disse, em entrevista, que existem entidades favoráveis ao Nortear no comitê do Ministério da Educação (MEC), mas também tem entidades que são contra ao PEI e a individualização da educação de autistas. “A oitiva é justamente para poder encontrar um caminho”, disse ela, em relação às divergências.

Embora alguns países utilizem termos diferentes para o documento, o PEI é utilizado em nações como os Estados Unidos, China, Reino Unido, Canadá, Arábia Saudita, Turquia e Sérvia. Lucelmo Lacerda, em entrevista ao Flow, já tinha argumentado que o PEI era um ponto controverso entre as vozes contrárias. “O PEI é obrigatório nos Estados Unidos desde 1973. [São] 50 anos de atraso”, afirmou.

Práticas baseadas em evidências e ABA

Ativistas contrários ao parecer argumentaram que a base teórica adotada pelos pesquisadores na construção do Nortear é, de forma geral, da psicologia comportamental. Nesse sentido, Marçal admite a influência. Mas, ao mesmo tempo, nega que o debate relacionado às práticas baseadas em evidências, tema presente no documento, são exclusivas da análise do comportamento aplicada (ABA).

“Nós trouxemos para o texto metodologias que são significativas, que são evidências, como a comunicação aumentativa e alternativa, dicas visuais, intervenção mediada por pares. Muitas delas têm uma base na análise do comportamento, embora o parecer não seja voltado para a análise do comportamento. Quando nós defendemos práticas baseadas em evidência, [elas] estão se modificando. O parecer já resguarda isso. A ciência é o fator norte para como deve ser a atuação do professor, inclusive para a formação de professores”, disse.

Ao mesmo tempo, a advogada enxerga que esse é o ponto mais difícil de encontrar consensos dentro e fora da comunidade do autismo, já que isso faz parte de um cenário mais amplo de resistência à análise do comportamento por parte de autistas ativistas em diferentes países. “É um tema em disputa e por ser um tema em disputa, um tema muito acalorado, nós entendemos que será necessária essa revisão”, concluiu.

É possível alcançar um consenso?

Em entrevista, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi) do MEC afirmou que a iniciativa de ajustes no parecer partiu do próprio CNE. Em março, um grupo de trabalho composto por entidades ligadas à educação, ao autismo e outras deficiências, encaminhou ao gabinete do ministro e para o CNE um documento com considerações relativas ao Nortear.

Questionada sobre os conflitos ocorridos na comunidade do autismo em relação ao documento, a secretaria defendeu que os diferentes pontos de vista devem ser observados em relação à discussão. “As redes de ensino querem ser escutadas por meio de UNDIME e CONSED, bem como outros atores da comunidade escolar e as próprias organizações representativas de pessoas autistas. A expectativa é que consigamos um texto que avance para refletir as necessidades dos estudantes autistas a partir dos princípios e diretrizes da educação inclusiva, o que não estava bem claro no texto original do parecer”, afirmaram.

Tanto a Secadi quanto Flávia Marçal afirmaram que o CNE está promovendo reuniões para dialogar em relação ao documento. “Acho que hoje em dia todo mundo está muito atento ao que está acontecendo no campo do autismo, seja na área da saúde, seja na área da educação, mas nós precisamos realmente tentar buscar o consenso. Eu acho que foi uma saída extremamente acertada, tanto do ministro quanto do presidente [Curi], porque o impasse não interessa a ninguém”, disse a advogada.

Ao mesmo tempo, Flávia declarou que deseja que o parecer também seja útil para impedir retrocessos na inclusão de autistas. Ela se disse preocupada com uma nota da Confederação Nacional das Escolas Particulares, que se declarou contra ao Nortear porque partiram do pressuposto de que o documento deveria defender a restrição de matrículas de autistas em escolas públicas e particulares.

“Esse debate começou a se encaminhar para posições que não podem ser defendidas, estão contrárias à legislação. Então por isso que o retorno do processo foi tão importante para que a gente realinhe, busque exatamente quais são os pontos que a gente consegue avançar e quais são os pontos que nesse momento talvez a gente não tenha condições políticas, ideológicas e até mesmo estruturais de conseguir caminhar”, acrescentou.

CONTEÚDO EXTRA

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Jornalista, doutorando em Comunicação pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e autor do livro "O que é neurodiversidade?".

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