1 de março de 2024

Tempo de Leitura: 5 minutos

Nos últimos anos nos surpreendemos com várias celebridades que descobriram ou reconheceram estar no espectro autista: a cantora Sia, a atriz Letícia Sabatella, o empresário Elon Musk, o ator Anthony Hopkins e a cantora Susan Boyle são só alguns exemplos. 

Sabemos que o autismo se divide em três níveis, de acordo com a necessidade de suporte ou apoio que a pessoa necessita, conforme descrito no DSM-5 (a 5ª versão do Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais).

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Todavia, na cultura pop, seja em filmes, séries, animações ou animes (os desenhos animados japoneses), temos vários personagens que possuem características do autismo. 

Bela é sempre a princesa mais citada quando se imagina personagens da Disney que possam estar no espectro autista. Afinal, ela manifesta traços sutis comuns às mulheres que apresentam autismo “leve” ou nível um de suporte. Assim, ela lê o mesmo livro várias vezes, não se adapta às pessoas no lugar em que vive, está sempre mexendo nos cabelos e é considerada “muito fechada” pelos outros.  Além disso, Bela tem um apego forte à figura paterna que, com traços excêntricos e foco em invenções, corrobora a ideia de autismo como algo genético, ao também manifestar características autistas. 

Em uma das canções do filme, na versão em português, os vizinhos de Bela cantam: “Essa garota é muito esquisita, o que será que há com ela? / Sonhadora criatura / Tem mania de leitura / É um enigma para nós a nossa bela (…) Nós nunca vimos moça tão estranha / Especial essa donzela / Nem parece que é daqui / Pois não se adapta aqui/  Todo mundo aqui acha que ela / É filha de um matusquela”. 

Vale lembrar que o hiperfoco em literatura de ficção é comumente associado às meninas autistas, enquanto os meninos parecem ter interesses mais excêntricos, conforme a literatura científica sobre o tema — como afimam Tony Attwood, no livro “Asperger no feminino“, e Raquel Del Monde, no capítulo “Diagnóstico é identidade”, no livro “Autismo no feminino“.

Já no anime “Death Note”, uma animação japonesa, temos o personagem denominado simplesmente como L. Ele é um detetive de consultoria internacional enigmático, sem rosto e altamente estimado que se comunica apenas por meio de seu assistente, o que demonstra uma clara dificuldade de sociabilização. Também é considerado um dos maiores detetives do mundo, tendo resolvido vários casos difíceis e nunca falhado em sua missão. Ele é extremamente inteligente, observador e dedutivo, sendo capaz de elaborar planos complexos e antecipar os movimentos de seu adversário.

Considera-se que L pode ter autismo nível 2 de suporte. Alguns traços podem indicar essa classificação. Ele tem hábitos estranhos, como sentar-se agachado em cadeiras, segurar objetos com apenas o polegar e o indicador, e comer grandes quantidades de doces. L também tem uma personalidade fria, lógica e calculista, mas mostra sinais de curiosidade, humor e emoção – ou seja, ele se expressa, muitas vezes, de forma desconexa. 

No universo Disney, Elsa, de “Frozen”, parece a fotografia perfeita de uma autista com maiores comprometimentos na socialização.  Na verdade, a falta de controle dela em usar os próprios poderes se apresenta como uma metáfora para a fobia social e os colapsos nervosos que muitos autistas apresentam, principalmente na juventude. Afinal, ela teme machucar os outros por esse descontrole de origem emocional e prefere permanecer isolada em função da dificuldade de interagir com os outros. 

Além disso, ela é bastante direta e sincera na sua forma de se comunicar, o que pode ser observado na antológica cena em que ela nega o pedido da irmã que deseja se casar ao afirmar “você não pode se casar com um homem que acabou de conhecer”, uma perspectiva que vai contra a maior parte das outras princesas Disney.

O universo de Harry Potter também possui personagens possivelmente no espectro autista, como por exemplo o famoso “magizoologista” Newt Scamander (protagonista da prequela “Animais Fantásticos e Onde Habitam” – e suas duas continuações). E novamente aqui temos, possivelmente, um personagem com nível 2 de suporte. 

Newt tem dificuldade para iniciar e manter interações sociais, mostrando pouco interesse ou habilidade em se relacionar com outras pessoas. Ele evita o contato visual e prefere se comunicar com seus animais. Também mantém uma rotina rígida e um pensamento inflexível, seguindo regras e padrões que ele mesmo estabelece. Ele se incomoda com mudanças e imprevistos e se apega a objetos e hábitos. Ele também tem uma sensibilidade auditiva aumentada, se assustando com sons altos ou inesperados.

O próprio ator que interpreta o personagem, Eddie Redmayne, afirmou em uma entrevista que acredita que Newt teria “um tipo de autismo”. No entanto, a autora da história, J. K. Rowling, nunca confirmou oficialmente que Newt Scamander é autista.

Agora vamos citar a personagem de um filme! Lucy, da comédia romântica “Tão Legal Quanto Você”, é interpretada pela atriz de “Pretty Little Liars”, Lucy Hale, como uma jovem doce que se torna obcecada em provar para o ex-namorado que não é ruim de cama. Dessa forma, surgem características muito evidentes de uma garota autista, seja ao fazer uma lista de várias atividades para provar não ser “pornofóbica”, seja ao não conseguir se concentrar na hora h, porque está pensando no modo de hiperfoco. 

Além disso, a personagem é socialmente ansiosa e extremamente ingênua, como pode ser exemplificado pela cena em que ela ingenuamente passa nos lábios uma espécie de Viagra que viu em um sex shop, achando que se trata de um batom. 

Outra característica marcante de pessoas autistas e dessa personagem é o pensamento concreto e literal. Há diversas passagens do filme em que isso fica evidente, como em uma cena em que ela resolve ler livros eróticos que abordam relações sexuais por meio de uma linguagem figurada. Só que, em vez de imaginar as cenas picantes, o que lhe vem à mente é uma interpretação literal da descrição do livro.

Nos quadrinhos e até recentemente nos filmes “O Quarteto Fantástico” e “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura”, “Reed Richards”, o Sr. Fantástico (gênio e cientista que tem poderes de se esticar) é um personagem da Marvel possivelmente autista. 

Alguns traços de Reed que podem estar relacionados ao autismo, como a dificuldade de se comunicar e se relacionar com outras pessoas, o interesse restrito e intenso por um assunto específico (neste caso, a ciência), a rotina rígida e pensamento inflexível, a sensibilidade a estímulos sensoriais, entre outros, já fizeram com que alguns fãs e críticos sugerissem que ele poderia ter síndrome de Asperger (nomenclatura em desuso abrangida para autismo nível 1 de suporte), que também pode se caracterizar por um alto nível de inteligência e uma baixa habilidade social.

Em uma revista em quadrinhos de 2012, Reed se autodiagnostica com autismo e procura uma cura para a condição. Essa abordagem foi e é considerada até hoje problemática: teria sido melhor como mensagem se o personagem aceitasse o transtorno mostrando formas de viver com ele e ainda ser um super-herói.

Ainda existem vários outros exemplos de personagens com características comuns ao autismo que poderíamos citar, como a Júlia de “Vila Sésamo”, Sam Gardner de “Atypical”. E muitos outros ainda surgirão.

O que se espera é que estúdios de cinema e animação como Disney, Universal, Warner e Toei Animation, bem como editoras de HQ como Marvel, DC Comics e demais empresas de mídias passem a abordar o autismo diretamente, como algo comum à sociedade. Não gostaríamos de considerar uma espécie de utopia ter personagens claramente autistas e identificados como tal, sem clichês e estereótipos nos futuros lançamentos. 

Sophia Mendonça é jornalista, doutoranda e uma das criadoras do canal Mundo Autista, no YouTube, tendo editado o livro “Neurodivergentes – Autismo na Contemporaneidade”.

Ramon de Assis é pesquisador, copywriter, escritor e mercadólogo. É um dos colunistas do blog Mundo Autista, no Portal UAI, e responsável por alguns textos do canal no YouTube.

CONTEÚDO EXTRA

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Jornalista, escritora, apresentadora, pesquisadora, 24 anos, diagnosticada autista aos 11, autora de oito livros, mantém o site O Mundo Autista no portal UAI e o canal do YouTube Mundo Autista.

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