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Nesta reportagem, vamos conhecer vivências de pessoas com diagnóstico ou suspeita de autismo que já estão na terceira idade e saber como os profissionais de saúde estão lidando com essa demanda. Isso, além de perceber como é a experiência desses idosos em família e em sociedade.
Autismo em idosos
A psicogeriatra e professora universitária Giovana Mol observa que os idosos, de maneira geral, apresentam maior tendência a sintomas ansiosos e depressivos ou pensamentos suicidas, além de um maior risco de fragilidade clínica e quadros demenciais que alteram cognição e linguagem.
Ela observa que o desenvolvimento de comorbidades psiquiátricas é mais frequente em autistas, incluindo idosos. Portanto, é importante o rastreamento de tendências suicidas. Giovana Mol alerta para estudos iniciais, ainda sem comprovação, que sugerem algum componente genético capaz de levar tanto ao autismo quanto ao Alzheimer de início precoce.
Algumas possibilidades dessa hipótese estão ligadas às comorbidades. Os transtornos depressivos, por exemplo, podem estar relacionados ao surgimento de Alzheimer. A psiquiatra pondera que, embora as pessoas autistas idosas possam apresentar menor isolamento social, em função do próprio autodesenvolvimento em sua trajetória, essa solidão, caso se manifeste, pode também ser um fator de risco para a demência. Ela percebe que os autistas idosos costumam estar mais abertos ao autoconhecimento e à elaboração profunda dos sentimentos, embora em alguns casos a falta de tratamento ao longo da vida possa culminar em comportamentos mais arredios.
Madalena sempre teve sinais de TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade) mesmo só tendo recebido recentemente essa identificação médica, durante o processo de investigação do diagnóstico de TEA (transtorno do espectro autista). Na infância, pelo comportamento “desligado”, suspeitaram que tinha deficiência auditiva e visual. Ela sempre teve que fazer supletivos, ter aulas particulares. Pegava recuperação e tinha dificuldade de memorização. A primeira filha de Madalena tinha microcefalia e más formações. A senhora de 68 anos conta que a filha ficava melhor na casa da avó, porque com Madalena a menina tinha gatilhos para colapsos em função da interação com os amigos dos dois irmãos caçulas. A filha foi diagnosticada autista e teve melhora nos quadros de agressividade após o tratamento. Ela faleceu aos 40 anos com uma doença degenerativa.
Com a pandemia, Madalena pesquisou mais sobre autismo para pensar no que poderia ter feito pela filha, mas acabou ela mesma se identificando com o que encontrava. Recebeu diagnóstico de TDAH, mas não encontrou profissionais qualificados para avaliação de TEA. Um médico lhe disse: “inventaram a história que todo mundo que não olha nos olhos e balança a perninha é autista”, o que a deixou confusa. A filha dela, que tinha o diagnóstico de TEA confirmado, olhava nos olhos, mas ela mesma só passou a se forçar essa interação depois de ser alertada pelo filho. “Mãe, por que você não olha para as pessoas na rua?”, disse ele. Ela conta que nem tinha notado que não fazia isso, e que não entendia o porquê deveria fazer, considerando não conhecer as pessoas da rua. “Eu não posso ficar olhando direto, mas não posso ficar sem olhar. É uma preocupação horrível na minha vida. Tenho que olhar e depois desviar um pouco”, conta.
Madalena relata que a organização dos pensamentos rápidos melhorou após o tratamento medicamentoso para o TDAH.. Apesar do resultadol dos testes solicitados pelo médico de outro estado, de que ela de fato é autista, Madalena segue procurando profissionais para finalizar os protocolos necessários à confirmação do laudo. “No meu íntimo eu sei que sou, mas não sou médica. O médico é que tem que dar o diagnóstico”, pondera.
Vivências em família
Anita Brito, doutora em Neurociências e palestrante, foi diagnosticada autista com altas habilidades em 2014. Seu pai, Arnaldo Brito, recebeu a identificação de TEA aos 72 anos. Ela também tem um irmão autista, além do filho, o fotógrafo e escritor Nicolas Brito Salles, cujo diagnóstico é de TEA nível 2 de suporte. Ela observa que, por terem recebido diagnóstico tardio e consequentemente menor acesso a tratamentos adequados, tanto ela quanto o pai e o irmão enfrentaram transtornos relacionados à socialização, como a manifestação de síndrome do pânico e a dificuldade com amizades. Em relação ao pai, ele foi rotulado de louco ou de homem recluso, fruto do machismo estrutural de alguém nascido em 1941 (quando homens deveriam ser mais fechados e esconder seus sentimentos). “O Nicolas é o grau mais severo entre nós, mas em alguns aspectos foi o que melhor se desenvolveu. É o que melhor consegue sair de algumas situações”, observa Anita.
Ao relembrar a infância, Arnaldo conta que “não tinha crianças para brincar. Dei muito trabalho para a família. Até hoje sou mais na minha. Visto a roupa que tenho que vestir, me sinto bem fazendo do meu modo. Eu batalhei muito e cheguei aonde eu estou. Amo minha família, meus netos”. Nicolas percebe que, como o avô e a mãe, ele é bem rígido no que se refere a sair de casa, embora queira trabalhar melhor essa dificuldade. O fotógrafo comemora a admiração do avô pela família e se surpreendeu pela idade em que veio o laudo, embora já notasse os traços em comum.
Em outro contexto, a profissional de tecnologia da informação (TI) Suzana Cardoso foi diagnosticada autista após o pai, um ex-combatente da Segunda Guerra Mundial, com mais de 90 anos, ser identificado com transtorno do humor ao ser avaliado por um médico com especialização em psiquiatria durante uma emergência. Logo veio a constatação do quadro de, pelo menos, fenótipo ampliado do autismo (FAA).
Suzana chama a atenção para as semelhanças entre ela e o pai no que se refere às questões sensoriais, especialmente no que diz respeito à hipersensibilidade ao frio e uma hiper-reatividade olfativa, que os leva a identificar odores rapidamente e a passar mal, mesmo quando ninguém mais percebe. Ela se preocupa com a hipossensibilidade à dor, porque tanto ela quanto o pai já passaram por situações perigosas em razão dessa característica. Ele, por exemplo, chegou a ter o dedo decepado sem uma dor expressiva, o que atrasou a tomada de providências. Por essas e outras, Suzana considera que o diagnóstico jamais será um rótulo. Para ela, o laudo não existe para justificar crises, por exemplo, mas para perceber porque elas acontecem e, assim, buscar estratégias para que suas causas sejam trabalhadas e observadas, de modo que os comportamentos não prejudiquem a própria pessoa, nem suas relações interpessoais.
Ressignificar e Intervir
A doutora em neurociências Annelise Júlio observa que muitos idosos autistas vêm de uma trajetória marcada por falta de pertencimento, que se associam a sintomas de ansiedade e depressão. Muitos têm histórico de abuso físico e psicológico, o que pode complexificar a análise de um diagnóstico diferencial. “Do ponto de vista da terapia eu entendo que os maiores desafios são aqueles associados à rigidez, primeiro da idade e depois do próprio perfil de rigidez cognitiva. Como ao fazer propostas de mudanças de comportamentos e hábitos disfuncionais que a pessoa teve a vida toda e que geram sofrimento, mas pensar em mudar, para eles, às vezes acaba soando mais sofrido que a própria mudança”, comenta Annelise. “Mesmo nos idosos, entender sobre os perfis ajuda no processo de ressignificação, até para eles mesmos. Não é porque é idoso que não precisamos falar em qualidade de vida, e as intervenções são mais assertivas o quanto mais específicas elas são”, pondera a neuropsicóloga.