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Principal uso é para a busca de novos medicamentos em plataformas miniaturizadas
Alysson Muotri
A criação de minicérebros humanos em laboratório a partir de células-tronco é um dos fenômenos mais interessantes da neurociência moderna. Essa nova ferramenta promete ser a grande vedete no tratamento de doenças neurológicas e genéticas, uma revolução na medicina.
Formados a partir de células-tronco pluripotentes, reprogramadas de células periféricas (sangue, polpa de dente, pele etc.) do próprio indivíduo, esses minicérebros (ou organoides cerebrais) são criados em biorreatores de laboratório, seguindo uma complexa receita química. Cada passo é importante e, dessa forma, consegue-se recapitular o desenvolvimento neural embrionário da pessoa in vitro. Muito da técnica é ainda empírica, pois as células-tronco fazem a maior parte do processo sozinhas, se auto-organizam em estruturas cerebrais tridimensionais de forma espontânea, seguindo as instruções genéticas codificadas pelo genoma do indivíduo.
A similaridade anatômica com o cérebro humano impressiona, mas é ainda uma versão miniatura, cerca de meio centímetro. As estruturas são pequenas porque ainda não temos vascularização para manter os mini-cérebros crescendo por muito tempo. Conseguimos manter esses minicérebros em cultura por um ou dois anos. Depois disso, observamos que o centro das esferas se torna escuro, um sinal de que as células estão morrendo devido à falta de nutrientes que só chegam por difusão. Cientistas já estão criando estruturas de circulação artificiais usando bioimpressoras, semelhantes a veias e artérias, que irão irrigar o interior desses minicérebros e permitir seu crescimento.
Mas a escala menor também tem suas vantagens. Podemos criar literalmente milhares de minicérebros de uma única vez e mantê-los em pequenas placas. E esses organóides podem ser usados para descobertas de novos medicamentos em plataformas miniaturizadas que permitam a comparação paralela simultaneamente. Esse tipo de escala é passível de automação, modelo preferido pela indústria farmacêutica. Além do teste de drogas para eventuais doenças neurológicas, esse modelo permite uma análise do impacto de drogas ambientais (toxinas, fertilizantes etc.) no desenvolvimento embrionário humano. Nosso laboratório na Universidade da Califórnia em San Diego consegue dizer rapidamente se existem toxinas que afetariam o cérebro embrionário em determinada amostra ambiental, fornecendo um selo de qualidade que deverá ser obrigatório para todos os futuros produtos, artificiais ou não, em alguns anos. Lógico que o modelo tem limitações, afinal os minicérebros não funcionam num sistema interconectado com outros tecidos (sistema imune, por exemplo). Acredito que muitas dessas limitações serão resolvidas num futuro próximo.
Apesar das promessas desse modelo, tudo isso ainda é muito caro para ser aplicado de uma forma personalizada. Felizmente, a ciência dá saltos. Ano passado, conseguimos reduzir o custo dessa tecnologia de forma considerável, possibilitando a geração de minicérebros de até cem pessoas de uma só vez.
O novo método permitirá estudar condições neurológicas geneticamente complexas, como o autismo idiopático.
E foi com esse modelo que descobrimos que os neurônios de minicérebros derivados de indivíduos autistas estabelecem um menor número de conexões nervosas (contatos sinápticos) comparado ao grupo controle (minicérebros derivados de neurotípicos). A alteração sináptica está provavelmente relacionada aos sintomas clínicos dos pacientes. O próximo passo agora é encontrar uma forma de corrigir os defeitos sinápticos nos minicérebros dos autistas. Isso será feito em parceria com a Tismoo, que abrirá seu laboratório para modelagem celular funcional na Europa ainda este ano. É um excelente ponto de partida para futuros ensaios clínicos.
Termino com uma visão filosófica e provocativa desta área científica. Como quase sempre, a ciência avança de forma não-linear, e muitas vezes nos pega de surpresa, sem deixar muitas chances para a reflexão sobre aspectos fundamentais dos dados gerados. Uma pergunta interessante seria se esses minicérebros teriam a capacidade de pensar, ou se teriam consciência da própria existência numa placa de petri. Apesar de rudimentar, as estruturas cerebrais estão lá, principalmente regiões do córtex frontal, responsáveis por uma série de funções cognitivas altamente sofisticadas. Será que essas redes nervosas seriam o princípio da consciência humana? Se sim, quais seriam as implicações éticas dessa tecnologia? Deixando de lado as questões filosóficas e éticas, acredito que esse novo modelo, associado a informação genética individual, trará a medicina personalizada para mais perto dos autistas.