Tempo de Leitura: 2 minutos
Uma pesquisa quantitativa de 2020 reforçou a ideia de que a diversidade de gênero na população autista é maior do que no público em geral. Apesar de muitos ainda se assustarem com dados e estudos como esse, a questão está longe de ser novidade para mim. Eu não tenho lembranças de me comunicar comigo mesma, por pensamento, sem utilizar pronomes femininos, mesmo tendo sido identificada como homem no nascimento
Minha mãe relata a primeira vez quando, ainda na primeira infância, disse a ela que “queria ser menina”. Quando entrei na adolescência, o desconforto com o meu corpo tornou-se muito evidente. Viajava à praia ou a lugares onde havia piscinas sempre com camisa e bermuda. Não usava sungas e sequer tirava a blusa. Tinha pesadelos recorrentes em que pelos nasciam em meu corpo e, quando eles vieram, não hesitei a apelar para a depilação a cera. Isso, mesmo com todo o desconforto sensorial que esse método pode trazer a uma pessoa autista.
Eu soube que era autista aos treze anos de idade, dois anos após receber o diagnóstico. Aos quatorze, fui encorajada por minha mãe a relatar aos profissionais que me acompanhavam sobre o forte sentimento de incongruência em relação ao sexo biológico. Foi o meu primeiro grande trauma. A equipe profissional evitava o assunto e buscava me ensinar estratégias para que tivesse comportamentos e trejeitos menos “afeminados”, com o argumento de que isso evitaria o bullying. Sempre que eu tocava no tema, sentia-me invalidada, como se eu não pudesse ter a percepção de quem eu era por mim mesma.
Havia uma forte curiosidade, por parte da equipe multidisciplinar, em saber minha orientação sexual, embora gênero e sexualidade sejam aspectos diferentes da identidade de uma pessoa. Uma pessoa trans pode manifestar qualquer orientação sexual. Por algum tempo, tentei aceitar o rótulo que me foi concedido de “homem gay” como forma de atenuar minhas angústias.
Há alguns meses, iniciei o processo de transição social, com acompanhamento psiquiátrico e psicológico e terapia hormonal com endocrinologista. Durante o processo de retificação de documentos e consultas médicas, precisei me sentir protegida por um amigo que me levava aos lugares onde precisava ir, tanto pelas minhas disfunções executivas quanto pelo medo da transfobia. A sociedade, que já tende a ter menor condescendência com o adulto e com deficiências invisíveis, é atravessada por muitos outros preconceitos e desinformações.
Considero a expressão “transição social” a mais adequada para definir o processo, porque sempre me vi como mulher, sempre fui mulher. A reação das pessoas próximas e muitos seguidores foi de respeitar a expressão da identidade de um ser humano que resgatou sua essência, revelando, enfim, o verdadeiro aspecto. E eu? Sigo flamejante no desejo de ser feliz e contribuir positivamente à sociedade, mas livre das amarras que se transformaram em sofrimento solitário.