1 de setembro de 2024

Tempo de Leitura: 8 minutos

Francisco Paiva Jr.,
editor-chefe da Revista Autismo

Com muita robustez, diversos estudos científicos apontam para um risco muito maior de suicídio entre pessoas autistas, se comparado à população em geral. Apesar de ser uma situação que comumente é subnotificada, os números dão conta de autistas tentarem tirar a própria vida quatro vezes mais que o restante da sociedade, serem hospitalizados por conta dessas tentativas seis vezes mais e efetivamente morrerem num número oito vezes maior que as demais pessoas. 

É inegável que essa situação seja um problema de saúde pública. Infelizmente, porém, é um tema muito pouco discutido na sociedade e com quase nenhuma ação de saúde pública no país, em todas as esferas. Deixar de falar sobre suicídio entre autistas não tem feito menos pessoas e famílias sofrerem com essa questão. Com muito respeito, cuidado e empatia, o tema precisa ser abordado e debatido.

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Relevante e urgente

O objetivo desta reportagem é colocar o tema em pauta, mostrar algumas histórias e estimular a discussão do assunto de uma maneira muito humanizada e respeitosa, com a plena consciência de que o tema é árido, denso, delicado, mas, sobretudo, relevante e urgente! O suicídio é assunto importante em qualquer população, logicamente. Entre pessoas com transtorno do espectro do autismo (TEA), porém, estudos científicos mostram que o risco é inegavelmente maior e isso estende-se, em muitos casos, a familiares também (levando-se em conta também a herdabilidade genética, pois familiares de autistas têm maiores possibilidades de serem autistas ou terem outras questões psiquiátricas, muitos ainda sem diagnóstico e sem nem levantar essa suspeita).

Muitos entrevistados não quiseram falar no assunto por ser um gatilho para sentimentos e lembranças dolorosas e outros queriam falar, me contaram suas histórias, mas temeram serem citados pelo estigma que a sociedade impõe — logicamente, respeitamos todos. Três autistas deram entrevista relatando até mesmo o “efeito terapêutico” de falar no assunto e na intenção de que isso possa ajudar muitas pessoas. A todos, sem exceção, agradeço pela colaboração.

ALERTA IMPORTANTE: Se você tem muita sensibilidade ao tema ou pensa que este tema possa ser um gatilho para emoções negativas, sugiro que você pule os próximos parágrafos e vá direto para o intertítulo “Ajude na pesquisa online“.

O CVV atende pelo telefone 188
(24h/dia e sem custo de ligação) ou via CHAT (clique aqui)

Histórias reais, dores reais

Fabio Sousa, o “Tio Faso”, um homem de 41 anos, diagnosticado autista na vida adulta, conviveu com pensamentos suicidas por mais de uma década e falou sobre como o diagnóstico de TEA lhe trouxe uma nova perspectiva. “Eu tive pensamentos suicidas constantes durante anos, especialmente antes de receber o diagnóstico de autismo. Eu quase fui embora por três vezes! Eu me sentia um peso pra minha família, porque eu acabava sendo sustentado por minha irmã mais velha e minha mãe e, desde adolescente até criança, eu via como os outros conseguiam fazer as coisas e eu não conseguia, sabe? Eu era uma criança sozinha, não tinha amigos, então isso, durante muitos anos, foi se acumulando… Numa dessas vezes, eu consegui entrar num pensamento bem racional e fui ler um manual de prevenção ao suicídio, e isso me ajudou a racionalizar e eu segurei a onda”, relembrou Faso, que é ilustrador e desenvolvedor de software, morador de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo.

“Mas quando eu descobri que eu poderia ser autista, ainda antes do diagnóstico, esse pensamento automaticamente sumiu, a ideia de poder ser autista cortou isso, porque eu finalmente poderia entender quem eu sou, né? E achar uma solução pros meus problemas. Então, antes de eu receber o diagnóstico definitivo de autista, eu já falava de suicídio, porque eu era diagnosticado com depressão severa. O intuito era desabafar nas redes sociais, no particular. Depois, quando eu descobri que isso é uma grande causa de morte de um autista nível um [de suporte], eu entendi que é muito importante falar abertamente, justamente para as pessoas entenderem que eu sei que pode não parecer, mas a situação vai melhorar! Eu sei que é difícil, eu sei que é puxado, mas tenha paciência, porque a gente tentar se matar é escolher um caminho sem volta para coisas que ainda podem ter solução. Se eu consegui aguentar mais de uma década com esse pensamento diário, eu acho que mostra para as pessoas que é possível segurar essa onda”, alertou Tio Faso, que também é um dos ilustradores da Revista Autismo há alguns anos.

Duas tentativas

A jornalista e escritora Sophia Mendonça também relembrou suas experiências dolorosas com tentativas de suicídio. “Já tentei suicídio duas vezes. A primeira vez foi em 2017, a segunda, em 2023. Esta última foi em meio a uma crise devido a um relacionamento abusivo e a uma medicação desregulada. Juntou-se a isso um episódio envolvendo publicações online e redes sociais que foram a gota d’água. A dor e o desespero foram tão intensos que eu realmente quis morrer, mas minha mãe conseguiu me socorrer a tempo”, relembrou.

“É um assunto tabu! Mesmo no jornalismo como um todo, o suicídio é um tema muito delicado. Há toda aquela ideia de que saber disso pode despertar gatilhos em alguém (embora os estudos mais recentes apontem para outro caminho). Acredito que é importante munir as pessoas de informações, porque há muitos mitos sobre isso, como: ‘depressão é doença de gente rica’ ou ‘quem quer não fala sobre isso’. E, quando acontece — e no autismo isso é estatisticamente muito mais comum —, as pessoas, famílias e comunidade médica dos hospitais, por vezes, têm ideias muito estereotipadas de como agir e muitos tornam-se mais duros e rigorosos, o que para diversos autistas pode ter um efeito contrário, visto que nossa comunicação tende a não ser tão funcional no que se refere a sentimentos e emoções. Some-se isso ao pensamento literal e a pessoa autista pode sentir-se desamparada e com a autoestima ainda mais prejudicada”, alertou Sophia, diagnosticada com TEA aos 11 anos de idade.

“É muito comum autistas terem que lidar frequentemente com sentimentos como impotência,  frustração e dificuldades de lidar com muitos pensamentos dolorosos. Sei de muitos outros autistas que também tentaram suicídio. Nos casos que conheço, o desejo não costuma ser morrer exatamente, mas acabar com aquele sofrimento, mesmo que isso custe a própria vida. Fico feliz em contribuir para esta reportagem para que se fale mais sobre o assunto e tenhamos menos estereótipos”, desabafou Sophia Mendonça, que hoje mora em Pelotas (RS) — a 261 km de Porto Alegre — e está com 27 anos.

Comorbidades e um propósito

Priscila Jaeger Lucas, estudante de mestrado, teve seu diagnóstico de autismo apenas na idade adulta. “Eu entrei num processo de crise extrema, que eu hoje defino como uma crise psicótica por causa das minhas comorbidades, uma delas é a esquizoafetividade, que é a esquizofrenia com características de bipolaridade. Eu adoeci mesmo em 2016 e 2017, meu diagnóstico foi no final de 2018”, contou Priscila, que relembrou características que traz desde criança. “Desde a infância, tenho questões de não me encaixar, não ter senso de pertencimento, desenvolver comorbidades e ficar à beira do suicídio. O maior choque da minha vida foi chegar no fim de 2021 e perceber que, pela primeira vez na minha vida, eu gosto de estar viva, eu gosto de quem eu sou, eu não mudaria quem eu sou e eu quero continuar viva. Eu não quero mais morrer, porque minha vida inteira eu tinha esse sentimento, mesmo que não fosse uma ideação digamos assim, ativa. Era aquela coisa passiva, do tipo ‘se eu morrer tá tudo bem, eu não vou me matar, mas se eu morrer está de boa’, sabe? Isso aconteceu depois de um processo de medicação e terapia”, relatou Priscila Jaeger Lucas, de 29 anos.

“Entre 2018 e 2020, eu tive uma ‘quase tentativa’. Pensei em meus pais. O que eles vão fazer? Eles vão sofrer. E minha gata? E esse é um ponto importante também, minha gata mais velha teve muita influência em eu continuar viva. Pela minha ligação espiritual com Deus, eu considero que foi um momento de salvamento, que eu tive. Não me importo se as pessoas acreditam na espiritualidade ou acreditam que foi meu cérebro. E eu considero que naquela época eu estava no meu extremo. Eu queria acabar com tudo, eu não queria mais sentir aquilo. Só que, ao mesmo tempo, eu procurava todas as formas possíveis, minúsculas, microscópicas, para continuar viva, me dar um propósito, que hoje eu considero que a carreira acadêmica é isso para mim”, argumentou Priscila, que é bolsista de pesquisa acadêmica na Unisinos, em São Leopoldo (RS), e mora em Nova Hartz (RS), cidade a 62 km da capital.

É preciso falar de suicídio

“A maioria dos relatos de ideação suicida que eu tenho conhecimento são de mulheres autistas com diagnóstico tardio. Infelizmente é um relato bem comum entre mulheres autistas. Acredito que falar, ao mesmo tempo que é terapêutico para mim, pode auxiliar outras pessoas a tentarem ultrapassar essa questão”, contou Priscila Jaeger Lucas, integrante do grupo Liga dos Autistas.

“A gente tem esse tabu enorme com o suicídio, que não devia ter, porque quanto mais a gente não fala, mais a gente torna isso algo terrível e isso vai continuar acontecendo como sempre. Não falar sobre [esse assunto] não vai evitar suicídios. Falar abertamente, mostrar que dá para buscar ajuda, é o que vai evitar que as pessoas se matem”, finalizou Tio Faso.

CVV

Representando o Centro de Valorização da Vida (CVV), Rosmary Ferreira de Sá, que é voluntária na instituição, falou sobre a campanha nacional de prevenção de suicídio, o “Setembro Amarelo”, e destacou a importância de abordar o tema o ano todo. “Apesar de a campanha contra o suicídio acontecer em setembro, medidas de prevenção devem ser objeto de discussões durante todo o ano. O Setembro Amarelo é apenas um alerta”, enfatizou Rosmary, coordenadoras do Grupo de Apoio aos Sobreviventes do Suicídio do CVV Abolição, em São Paulo (SP). “O Ministério da Saúde vem se empenhando na implantação de uma política em prol da prevenção do suicídio e o CVV contribui constantemente para a prevenção com seu serviço gratuito”, completou Rosmary.

Fundado em 1962 e referência a respeito do suicídio no Brasil, o CVV é um serviço voluntário gratuito de apoio emocional e prevenção do suicídio para todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo e anonimato. A instituição oferece atendimento pelo telefone 188 (24h por dia e sem custo de ligação), por chat, e-mail e pessoalmente (veja no site cvv.org.br). Nestes canais, são feitos mais de 3 milhões de atendimentos anuais, por aproximadamente 3.500 voluntários, presentes em 20 estados, além do Distrito Federal.

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Ajude na pesquisa online

Para termos mais informação a respeito deste tema no cenário brasileiro, a Tismoo.me, em parceria com a Specialisterne Brasil, está fazendo uma pesquisa online sobre o mercado de trabalho e a saúde mental de autistas. Quanto mais pessoas responderem, autistas e não autistas, melhor será a qualidade dos dados e a relevância do resultado. Por isso, peço sua ajuda para responder e divulgar a pesquisa para o maior número de pessoas possível, na sua empresa, na universidade, na escola, entre amigos, enfim, para todos que puderem colaborar com esse estudo investindo 3 minutos do seu dia para responder à pesquisa. 

O endereço para responder ao formulário online da pesquisa é tismoo.me/pesquisa. Você ajuda respondendo, pedindo para toda sua família responder e também divulgando, inclusive nas suas redes sociais.

Estudos científicos e mais conteúdo

A quem quiser se aprofundar neste assunto, os links para os estudos científicos e para conteúdos extras estão na versão online desta reportagem, que pode ser acessada por meio do QR-code que está na página do índice desta edição.

 

CONTEÚDO EXTRA

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